CABEÇA - UM DOCUMENTÁRIO CÊNICO |
Mesmo com a crise política e econômica chegando aos palcos,
com corte de patrocínios e teatros fechando suas portas, escolhas dramatúrgicas
conscientes conseguiram derrubar muros e estabelecer uma corajosa e brilhante
temporada.
Diferencial dos anos precedentes, com menos investidas nos musicais. Mas de incisivas experiências performáticas
monologais , raras mas valorosas incursões na dramaturgia estrangeira e um surpreendente alcance na problemática
político/social da contemporaneidade .
O musical, até então com seu comprovado domínio na
preferência do público, teve seu espaço reduzido nos palcos cariocas. Que,
depois do surto de eficiente aproveitamento do manancial à moda Broadway, desgastou-se
na experiência biográfica, dando, afinal, agora, um inusitado salto.
DESTAQUES DA TEMPORADA
A reinvenção do musical na gramática cênica de admirável
riqueza plástica, poética e coreográfica do Auê, com o carisma da inventividade
autoral do elenco e da direção de Duda Maia. E na energia, na fluência narrativa e na visão
aberta de Cabeça - Um Documentário Cênico em que Felipe
Vidal, com uma nuance vanguardista e sem jamais perder a lucidez, faz uso da pulsão pop/roqueira incitando um instigante musical de questionamento político.
Em outro ângulo, o texto confessional ,com dolorido lastro de
interiorização memorialística, estabeleceu um paralelo entre os tributos afetivos de
Matheus Nachtergale em “Processo de Conscerto do Desejo” e de Álamo Facó
em Mamãe, na proposição poética e
nos ecos da fisicalidade diante da trágica finitude maternal.
Numa dissecação via Artaud/Van Gogh da palavra crueldade
contra tudo e contra todos pela liberdade da
condição humana, a performance quase teatro/dança, Entre Corvos, reúne em laminar contundência cênica, Marcelo
Aquino(ator),Ary Coslov(direção) e Ana Vitória(movimento).
Enquanto a ressonância do corpo/sangue/palavra estabelece um
outro liame referencial Artaud<>Grace
Passô em Vaga Carne, num dos mais irradiantes solilóquios físico/emotivos da nova dramaturgia.
OS CADERNOS DE KINDZU/FOTO DANIEL BARBOZA |
Inserindo-se ainda às comemorações quarto/centenárias de Shakespeare,
uma versão de transcendente teor reflexivo sobre os meandros políticos do poder
e submissão, junta , sob o comando de Roberto Alvim, Caco Ciocler e Carmo Della
Vechia em Caesar-Como Construir um
Império.
E é, ainda, Roberto Alvim que incentiva a potencial entrega
de Juliana Galdino em Leite Derramado,
incômodo na sua opção pela oralidade seca e direta do textual literário,
instintivo na exploração do onírico e do pesadelo, veemente por seu contraponto
crítico. Transcrição livro/palco que se faz presente, também, no expressivo e
inovador tratamento dramatúrgico da linguagem literária de Os Cadernos
de Kindzu, mais um lance mallarmaico
de dados do Amok Teatro.
Dando continuidade a esta proposta de acabamento artístico ,sob
o signo de rigorosa maturidade profissional e com sotaque de perspicaz e irônica
visão contestadora, O Escândalo Phillipe Dussaert desconstrói
a valoração estética da arte contemporânea na envolvência da entrega solo de
Marcos Caruso.E Guilherme Weber, na peça de Will Eno - Os Realistas , conduz primorosa interpelação afetiva dos relacionamentos humanos em suas indagações sobre a morte, num elenco com protagonização ímpar de Débora Bloch.
Impressionam, também, as impactantes virtualidades
plástico/reflexivas, entre sangue e vísceras, da insensatez da condição humana
em Gritos, da Cia Dos a Deux .Além dos Nós,
da criação autoral do Grupo Galpão e de
Márcio Abreu, que sufocam as verbalizações das interioridades do eu cotidiano,
estabelecendo pontes com o Brasil de hoje.
E, enfim, a concepção diretorial de Aderbal Freire Filho, em Céus(de Wajdi Mouhawad) e A Paz
Perpétua (Juan Mayorga), dramatizando o gosto
amargo de desalento, decepção e pânico, de dias sintonizados na zona escura dos terrorismos internacionais e das
irracionalidades pátrias.
Wagner Corrêa de Araujo
Wagner Corrêa de Araujo
LEITE DERRAMADO/ FOTO EDSON KUMASAKA |
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