CASA DA MORTE. Julho 2014. Foto/Divulgação. |
O conceituado escritor e dramaturgo espanhol Fermin Cabal é o autor da peça Tejas Verdes, como era conhecida certa casa de repouso e recreação no Chile, que se tornaria, na era Pinochet, uma das
mais cruéis células da tortura militar onde, para os que chegavam como
prisioneiros, só existiria fatalmente a porta de entrada.
Fazendo uma referência ao título do romance de Dostoiévski, Recordações da Casa dos Mortos, a dramaturga Fátima Saadi, com
ligeiras alterações no nome dos personagens originais e nas indicações locais,
suprimindo ainda o último ato da peça de Cabal, fez de Casa da Morte um contundente libelo contra o golpe militar de
1964.
Na minimalista e funcional concepção do diretor Antonio Guedes, para o seu grupo Teatro do Pequeno Gesto, com
sotaque de teatro documental, em suas nuances de retrato sem retoques de um
tribunal clandestino de morte, a peça com um trio de atores/depoentes, se
alternando entre vítima, delator, médico e coveiro, leva o público a uma certa
casa em Petrópolis. E aqui qualquer semelhança não é mera coincidência.
Com cenografia despojada, ruídos incômodos e insistentes além de uma espécie de luz/tocha acentuam o aprisionamento de um seguro elenco (Fernanda Maia, Priscila
Amorim e Marcos França) na sala de tortura, no tribunal militar e no cemitério clandestino, cara a cara com a plateia, detonando nela um
extraordinário sentimento múltiplo de comiseração e de revolta.
A outra peça – Segundos
Fora, inédita e de autor estreante (Álvaro Jorge Braga Mendes) revela um
texto de sólida urdidura ao abordar o conflito de um fuzileiro naval entre
continuar servindo ao regime ditatorial militar ou optar pela escolha de uma
livre trajetória existencial.
Apresentada em forma de leitura dramática, quase ao alcance de teatro
encenado, na simpática Sala Clarice Lispector da Casa da Leitura, com um surpreendente elenco jovem da Cia. de
Teatro Contemporâneo, sob segura direção de Dinho Valadares, impressionando pela abordagem absolutamente singular
daqueles negros anos da história brasileira.
Retornando a Dostoiévski, que conseguiu sobreviver a uma
"casa da morte" czarista,
na emoção coletiva palco/plateia causada pelas duas peças, a esperança de que,
apesar de tudo, ainda pode existir uma luz após o pesadelo:
“Posso testemunhar que,
no ambiente mais ignorante e mesquinho, encontrei sinais incontestáveis de uma
espiritualidade extremamente viva”...
DOIS AMORES E UM BICHO. Agosto 2014. Foto / Mayra Vaz. |
“Quanto mais conheço os
homens mais estimo os animais", elucidativa reflexão do escritor português
Alexandre Herculano que, do século XIX, se aplica bem à peça Dois Amores e Um Bicho, de Gustavo Ott,
com a Cia Tentáculos Espetáculos.
A primeira particularidade da montagem está na oportuna
encenação de um dos mais conceituados autores contemporâneos da Venezuela -
Gustavo Ott. Isto representa uma saudável opção pela dramaturgia latino
americana, tão rara em nossos palcos, além de mostrar um teatro com forte viés
político/filosófico, ao enfocar temas tão atuais e próximos de nós como a
violência, a defesa da natureza e a homofobia.
A visita dos pais à filha, esta trabalhando como veterinária num
jardim zoológico, detona um processo de traumática memória familiar. Ao
questionar os motivos do isolamento de um orangotango, Pablo, o pai, se vê
diante da lembrança de similar situação (o molestamento entre animais do mesmo sexo) que o
levou à prisão por ter matado, a pontapés, o seu cão de estimação, ao descobri-lo nesta mesma forma de relacionamento com outro cachorro.
Este ímpeto de raiva e rejeição teve como pano de fundo,
simultâneo, a cruel morte de crianças numa escola, em atentado à bomba. A
partir desta revelação, o roteiro dramatúrgico se estrutura na dualidade
violência e preconceito, conduzindo a uma rude e sofrida batalha verbal entre
pais e filha.
A cenografia (Carlos Augusto Campos) acentua o aspecto prisional, com animais em
gaiolas e palco/arena com uma parede de espectadores dos quatro lados, aos
quais os atores se dirigem, olhos nos olhos, em quase solilóquios, com uma indumentária (Ricardo Rocha) de simplicidade cotidiana.
Onde um nervoso score sonoro serve para aumentar, paralelo aos ruídos dos animais, o clima de incomunicabilidade, sob alterativos efeitos luminares (Daniel Archangelo) entre o focal e o vazado. Tudo isto refletindo a insensibilidade e torpeza dos homens que os rodeiam, na sua falta de compaixão pelos seres que ocupam com eles o planeta Terra.
Onde um nervoso score sonoro serve para aumentar, paralelo aos ruídos dos animais, o clima de incomunicabilidade, sob alterativos efeitos luminares (Daniel Archangelo) entre o focal e o vazado. Tudo isto refletindo a insensibilidade e torpeza dos homens que os rodeiam, na sua falta de compaixão pelos seres que ocupam com eles o planeta Terra.
Com maior domínio cênico dos pais como personagens (Vítor Fraga e Ana Paula Novellino) e mais
sóbria interpretação dos outros atores (Yndara Barbosa e Luís Paulo Barreto), a
peça tem inventiva concepção visual e dinâmica direção de Guilherme Delgado, na
difícil tarefa de expor as controvertidas posturas morais da natureza humana.
“O nosso propósito é
criar e comunicar um teatro dos sentidos que sintetize as várias artes, de
provocação e compromisso com o presente, uma arte centrada no ator e no jogo
entre estes e o público, afirmando a vocação universal”.
Por este ideário pode se perceber, de imediato, a seriedade
de um grupo de origem portuguesa a Companhia
do Chapitô, que em suas quase duas décadas, tem conquistado o aplauso
unânime do público e aprovação entusiástica da crítica.
Com seu repertório que privilegia a livre adaptação contemporânea
dos grandes clássicos, ora do teatro ora da literatura universal, em montagens
absolutamente concisas onde tudo é direcionado para o trabalho do ator, com
sua presença física, seu gestual, sua expressão emocional pela voz.
São realizações que envolvem imediatamente o público sem, em
nenhum momento, exigirem sua participação física mas sim incitando sua
imaginação criadora no despojamento dos quase inexistentes recursos técnicos
habituais do teatro – cenografia, figurinos, iluminação, score musical.
Aqui, através da sua versão de Édipo retomando com um viés inteligentemente cômico, o
mais celebrado personagem do teatro grego, com apenas três atores, num palco vazio, com iluminação vazada e uma simulação
de cortina negra. Em menos de uma hora, que passa quase em minutos pela
capacidade de prevalência sobre a plateia.
Que não é só pelo energizado exercício físico do ato da
representação, mas na contínua mimetização destes atores (Jorge Cruz, Marta Cerqueira,
Tiago Viegas) ora via suas referencias circenses ou mesmo coreográficas, ora
através do sotaque burlesco com seu humor irônico, sem nunca apelar
para o previsível e para o chulo.
Capazes, sim, através destes instrumentos narrativos com
perfeito domínio do tempo cômico, de até remeter à filosófica reflexão de Henri Bergson - "o risível reside no gesto humano".
Tudo em tons provocadores neste desdobramento humorístico que, sem
desqualificar a trama dramatúrgica de Sófocles,
tem seu aporte trágico transformado em denúncia, pela inquietante reinvenção da
catarse pelo riso, no comando de John Mowat para uma “comédia visual” com apurado referencial de teatro físico.
Wagner Corrêa de Araújo
ÉDIPO - CIA DO CHAPITÔ. Setembro 2014. Foto/Filipe Dâmaso Saraiva / Simão Anahory. |
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