Entre os esboços não acabados e vacilantes, os achados e perdidos das perguntas sem respostas, entre o ser um eu e o quase tudo, entre o luxo do silencio e do coração batendo no mundo, entre o ser o antes, o quase ou o nunca, entre ser tão misteriosa que não se entende, vai se tecendo a escrita amorosa de Clarice Lispector.
Perto da filosófica construção verbal de explosiva
exteriorização do eu, seus textos quebram as fronteiras entre o poético e o
ficcional, entre o confessional e o documental. E vão, assim, criando
identificações mágicas com seus leitores ao estabelecer pontes entre estes
abismos interiores.
Enfim, é entre o ser o eu da escritora e o ser o tu dos que
fruem sua palavra que, de repente, nós já não somos nós, somos ela. E foi este
o grande lance "mallarmaico" de dados que a direção de Delson Antunes
alcançou em sua concepção dramatúrgica de "Se Eu Fosse Eu".
Diante dos desafios de uma linguagem equilibrada entre o
confronto do pensar abstrato quase hermético e a sensível fruição personalista de
seu entendimento, conseguiu abrir as portas da percepção num coletivo ritual de
comunhão palco/plateia.
Concebido inicialmente como um sarau cênico que percorria os
ambientes centenários da Casa da Leitura na sua versão 2013, retorna, agora,
numa proposta mais reclusa entre as quatro paredes de um teatro convencional.
Embora tenha perdido um pouco da pausa respiratória reflexiva
(mais que obrigatória em Clarice), presente entre os deslocamentos dos quadros
da concepção anterior, ganhou, aqui, um destaque maior na bela confluência
estética da cenografia (Miriam Virna e Renata Caldas) e dos sugestivos
figurinos (Vinicius Ventura).
Realçada, ainda, no desenho das luzes (Luiz Paulo Neném) e
dos efeitos sonoros (Pedro Veríssimo/Fernanda Aranha). E, conceitualmente, na
exacerbada sintonia do elenco na diversidade performática das Clarices
- de um romantizado retrato (Tereza Hermanny) à visceralidade
transgressora de outro (Thiago Chagas).
Afinal, tudo valendo para compartilhar este rarificado
convite teatral, manuscrito no pensar desafiante da própria Clarice, pois : “Se eu fosse eu parece representar o nosso
maior perigo de viver, parece a entrada nova no desconhecido”.
JAZZ NO CORAÇÃO. Agosto 2014. Foto / Guga Melgar. |
“Ainda não consegui
fazer filosofia, versos ou colar retratos aqui (...) Queria voltar ao atelier,
leiloar tudo se necessário. Mas sentir as mãos livres, os passos soltos! Minha
vida chega a um impasse”.
A partir de reflexões como esta, em formato de prosa poética,
a concepção conjunta, da atriz Françoise Forton e do dramaturgo Delson Antunes,
conduz a um inventivo e envolvente inventário poético/teatral em torno da
obra de Ana Cristina Cesar, no espetáculo Jazz
do Coração.
Aqui nada, além da mensagem poética, é necessário para expor o
universo existencial de uma autora que, mesmo com sua fugaz passagem
existencial, conseguiu impregnar em seu comportamento de vida e obra, os signos
de toda uma geração, ecoando seu grito numa época de contradições, à beira dos
anos pós golpe de 64.
Num suporte minimalista, a montagem fala, com rara emoção, de
um tempo quase ancestral diante do que viria, a seguir, com as especificidades
virtuais da geração internet.
Mimeógrafo, máquina de escrever, telefone fixo com disco e
fios, cartas manuscritas, malas-baús, postais com selos ocupam o pequeno
espaço cenográfico de Jeane Terra. Enriquecido ainda pelos figurinos de Carol
Lobato e energizado no gestual de Adriana Bonfatti, numa proposta poética e memorialista,
ressaltada pela inspirada trilha sonora, com poemas musicados por Pedro Luís.
E complementada na
sensitiva representação de duas atrizes (Françoise Forton e Aline Peixoto) que
alcançam o sotaque necessário para o complexo e, às vezes, difícil
relacionamento entre a linguagem poética pura e a performance teatral, campo de
indiscutível experiência e domínio do diretor Delson Antunes.
Paixão e caos, euforia e solidão, intimismo cotidiano e apelo
universal, marcas do universo poético de Ana Cristina Cesar, refletidos na
colagem poético/musical de Jazz do
Coração, recomendam a montagem, com um especial destaque no tom carismático
de Françoise Forton, ao assumir a personalidade trágico – lírica da poeta.
E ainda pela constatação de que, neste adequado roteiro
dramatúrgico, a singeleza cênica nada mais é do que um apanágio da própria palavra
poética - necessária sim, mas onde a aparente simplicidade é sempre grandeza:
"O coração só
constrói
decapitado
e mesmo então
os urubus não comparecem".
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Há uma grande distância quando Shakespeare rima versos de
suas tragédias pensando em teatro, atores e plateia e o uso da voz poética
singular, transmutada da folha de papel ao palco.
E quando se trata então de João Cabral de Melo Neto, como é o
dimensionar e o traduzir em cena o intransponível e o irredutível do seu pensar
poético abstrato e quase hermético?.
Ao contrário, por exemplo, da comunicabilidade emotiva
imediata de uma Adélia Prado e que já mereceu, também da Companhia de Teatro Íntimo, uma de suas mais incisivas concepções.
Renato Farias, mesmo assim, aceitou o desafio de se aventurar
na transposição cênica da emoção sob controle deste poeta-engenheiro, onde
cada um de seus “objetos poéticos"
tem o corte seco, direto e afiado de uma lamina.
Arriscando-se diante da complexa e superlativa inventividade
composicional do universo cabralístico,
buscou imagens associativas para a decifração da árida simbologia desta
metalinguagem e desta metapoesia.
Onde, habilmente, soube transformar estes poemas quase físicos em
sensoriais elementos cenográficos (Melissa Paro) como caules de cana para o
referencial pernambucano mais as sonoridades (Diego Zarcon) e o gestual flamenco (Eliane Carvalho) para as evocações sevilhanas. Além de malas contextualizando
partidas e chegadas, entre dois mundos e um mar.
A materialização visual nos figurinos (Thiago Mendonça) da
sintética e metafórica linguagem cabralina
consegue, ainda, uma adequada conotação na sensibilizada e enérgica entrega do
elenco.
Intimista e mais personalista nos atores Caetano O’Maihlan,
Rafael Sieg e Raphael Viana no confronto com a sutil exteriorização
coreográfica de Gaby Haviaras, que “subida
ao dorso da dança vai carregada ou a carrega?”.
João Cabral, a peça, é enfim uma identificação de
dentro e de fora, poesia e teatro, performance e palavra poética, capaz de
convergir paisagens díspares como canaviais com praças de touros no entremeio de
Sevilha e Recife, fazendo interagir palco/plateia no clímax estético de “Educação pela Pedra”.
Numa entrega convicta que, enfim, na imagética definição do próprio poeta “é a que se sente ante um revólver / e não se
sente ante uma bala”.
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