O verdadeiro sentido da tragédia, a par dos acontecimentos
que a conduzem ao seu desenlace fatal, reside no dimensionamento psicológico do
personagem heroico. É este que, no impacto de suas sofridas ações, conduz a
plateia à libertação pela catarse. Razão maior da escritura trágica encontrada, assim, na
sublimidade reflexiva. Causa e consequência da dolorosa intensidade das paixões
humanas diante dos infortúnios do destino.
Na investigativa proposta do diretor Guilherme Leme Garcia, em Trágica 3, está implícito o destaque
dado às heroínas do teatro ancestral grego, capazes de decisão
individual, própria e corajosa, numa sociedade de predomínio patriarcal. Aqui, em monólogos recortados de três grandes tragédias
clássicas de Sófocles e Eurípides, o elemento feminino alcança o mesmo status de dignidade e postura
independente do homem, numa mais que milenar previsão dos direitos plenos alcançados
apenas a partir do século XX.
A incisiva estética do espetáculo conjuga música, artes
visuais, performance plástica, numa concepção contemporânea, tanto cenográfica (Aurora dos Campos) como
textual, de personagens míticos como Antígona,
Electra, Medéia. Com rico suporte técnico artístico reunindo elegante indumentária (Glória Coelho) a precisos efeitos luminares (Tomás Ribas), além das incidentais conexões sonoro/musicais com referencial greco-eletrônico (Letícia Sabatella, Fernando Alves Pinto e Marcelo H).
Antígona levanta a voz de sua própria consciência contra os
desmandos do poder político preferindo a condenação à morte que aceitar as
ordenanças de um ato tirânico. O texto, original de Caio de Andrade, estabelece
na pontual presença cênica de Letícia Sabatella, entre o canto, a palavra e o gestual,
um grito de dor parado no ar.
Na Electra, de
Francisco Carlos, uma princesa mesmo submetida à condição de escrava, faz ecoar
sua atitude insubordinada na obsessão de vingar o assassinato do seu pai pela
própria mãe. Em visceral atuação Miwa Yanagizawa, ajoelhada em postura
oriental, recria com a face hierática e braços abertos, qual animal ferido, seu
desejo de vingança, acentuado pelos sanguíneos tons da iluminação.
Completando esta rica tríade teatral que enaltece a cena
carioca, Medéia, onde o primitivismo
bárbaro do amor transmutado em ódio, alcança a nuance de maior tessitura
dramática na emotiva e angustiada interpretação de Denise Del Vecchio, em texto
de clareza contundente do dramaturgo Heiner
Muller.
Duas tragédias de Shakespeare conquistaram o público carioca pela forma peculiar como foram encenadas. Tanto o Ricardo III, dirigido por Sérgio Modena, como o Rei Lear, comandado por Elias Andreato, reduziram seu extenso cast de personagens a um único protagonista, mantendo, mesmo assim, as linhas mestras da narrativa dramatúrgica original.
Ricardo III, na concepção de Gustavo Gasparani e
Sérgio Modena, conseguiu, com uma voz solitária, contar e representar um dos mais
sanguinários enredos shakespearianos, de uma forma didática com tal clareza e
interatividade, que a plateia saía do teatro, em intimista convívio dos passos
desta intrincada trama de histórias paralelas. Em cena, Gasparani assumindo solitário, com ênfase e raro brilho, a violenta disputa por um mesmo trono
opondo duas linhagens aristocráticas, tendo à frente a controvertida e soturna
figura de Ricardo III.
Já no Rei Lear, ao
ter seu reino doado, por circunstâncias advindas de sua extrema velhice, às suas
três filhas, deixando-se, no entanto, ser ludibriado com a gananciosa e falseada cordialidade
das mais velhas Goneril e Regan, ao deserdar a mais nova - Cordélia, pela sua incisiva recusa ao disfarce da mentira na apologia ao amor paterno.
Na montagem de Elias Andreato, a partir da tradução com
adaptação concisa de Geraldinho Carneiro, o único protagonista é um ator (Juca
de Oliveira) que divide sua trajetória dramática por seis personagens,
centralizados em torno de Lear, o já
quase decadente e fragilizado monarca em terminal idade.
Em apenas 60 minutos, o intérprete assume um papel de
contador de histórias, muito próximo de uma leitura dramatizada, na qual as
diversas facetas expressivas, as marcas vocabulares e o clima emocional são
alcançados num exacerbado exercício de troca de personagens. Com uma cenografia minimalista (Fábio Namatame), incidental
trilha sonora (Daniel Maia) e discricionário desenho de luz (Wagner Freire),
paira acima de tudo a palavra e o gestual de um grande mistificador mor da arte teatral brasileira - Juca de Oliveira.
E se nesta adaptação é minimizada a dimensão politica e o
tônus filosófico da tragédia clássica original, por outro lado, estas muitas
vidas concentradas instantaneamente numa só personificação refletem, enfim, um
trágico e poético retrato shakespeariano da própria condição humana: “Fugaz como o som, passageira como a sombra,
curta como o sonho, rápida como o relâmpago em noite escura”.
Já no “Tríptico Samuel
Beckett”, o diretor Roberto Alvim adapta para o palco, três textos
ficcionais do escritor, poeta e dramaturgo irlandês, enfatizando sua concepção
metafísica sobre o tempo como uma eternidade imóvel, inerte, absurda e sem
nenhum sentido. Aqui, três mulheres de faixas etárias diferentes, em
solilóquios amargos, abstraindo-se de qualquer narrativa linear, deixam apenas
enunciar tematicamente o vazio, no embate solitário do homem em sua corrida direcionada à morte.
Conceitualmente a montagem é marcada pelo equilíbrio de recursos
técnicos, a começar da concepção cenográfica e luminar (Roberto Alvim) pontuada plasticamente através de um esqueleto metálico, um score musical (L. P. Daniel) de
melancólicas interferências, gradações de uma iluminação claro/escura e um
figurino branco/preto (Juliana Galdino) - que remete à ambientação soturna das gravuras de Goya.
No primeiro monólogo (Para
o Pior, Avante), Juliana Galdino se destaca num labiríntico jogo vocabular,
fazendo de sua angústia existencial, um inventário linguístico que aproxima Beckett de seu conterrâneo irlandês James Joyce. Ao mesmo tempo que traz uma
incômoda sensação ao público pelas variações radicais de tonalidades vocais -
entre gritos e sussurros - no limite extremo do não significado das palavras.
Fazendo uso de uma loquacidade próxima de vozes infantis e
uma sequencia de reflexões mais ingênuas da pré-adolescência de uma menina/moça,
Paula Spinelli tem convicta performance no texto de menor sustentação da trilogia - Em Companhia.
Mas é no terceiro momento do tríptico “Mal Visto, Mal Dito” que a expressão estética da encenação atinge a
plateia com o corte laminar, pela trágica dramaticidade da exposição de uma
velha mulher às portas de seu epílogo existencial. No delírio da ancestralidade
de suas lembranças de vida, se confronta com ela mesma, numa árdua tentativa de
encontrar uma identidade pessoal e um significado na finitude existencial.
Com uma carga menos densa de experimentalismo linguístico, mas
mantendo a nuance cáustica dos monólogos precedentes, em destaque a impostação e a extensão
vocal, a carga emotiva da performance e a hierática e solene presença cênica de
uma atriz do porte de Nathalia Timberg.
Numa envolvência carismática palco plateia esta representação
feminina em formato tríptico, barrocamente arquitetado, acaba tornando luminoso
seu proposital hermetismo, explícito nas próprias palavras de Samuel Beckett: “Nada tenho para
dizer, mas somente eu sei como dizer isto”.
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