A MOÇA DA CIDADE. Junho 2014. Foto/Gui Maia. |
Em 1978, quando Humberto Mauro completava seus 80 anos, inaugurava-se em Belo Horizonte a Sala do Palácio das Artes que leva o nome do pai do cinema brasileiro.
Então curador e responsável pela programação de cinema
daquela fundação cultural, sugerimos a homenagem com a escolha do filme de Alex
Viany, a partir do último roteiro inédito do cineasta mineiro, A Noiva da Cidade, que teve ali sua première nacional.
Lembro este fato a propósito da recente montagem do texto A Moça da Cidade, do dramaturgo de Mato Grosso, Anderson Bosh, com uma série
de referências que remetem ao roteiro de Humberto Mauro.
Neste, a personagem é uma moça carioca acostumada a todas as
futilidades da vida fácil na praia e nas recepções sociais, nos vícios esnobes do fumo e do vinho francês e que,
cansada de tudo isto, corre para uma cidadezinha do interior para reciclar sua
vida e buscar um amor mais puro e substitutivo às interesseiras investidas machistas da cidade grande.
Já a Moça da Cidade,
da peça, sai sozinha do seu provinciano ambiente familiar nordestino para
descobrir os encantamentos que o Rio de Janeiro pode propiciar a uma jovem
romântica e sonhadora e, entre tapas e beijos, passa por todos os súbitos e provocativos
sustos propiciados por sua ingenuidade.
Enquanto a Noiva da
Cidade do filme, em meio a recalques e recatos, escandaliza a tradicional
família mineira ao levar todos os mancebos locais a uma avassaladora paixão
coletiva.
Nos dois casos, com um sotaque de comédia e melodrama, risos
e lágrimas, bem de acordo com a cartilha e os ingredientes da rádio novela anos 40/50.
E é este clima que a inventiva direção de Rodrigo Pandolfo
assume na peça, com originalidade e envolvente dinamismo, alternando
cenicamente a romantizada contação da história num estúdio radiofônico e as
sequências dramáticas narrativas entre a vida real e os personagens novelescos.
Com a envolvência da performance de três atores se desdobrando em inúmeros
papéis (Lu Camy, Gabriel Delfino Marques e Vitor Varandas).
O resultado é um momento feliz da atual temporada teatral
onde tudo está no lugar certo : figurinos quase de época (Bruno Perlatto), nostálgico
score sonoro (Marcelo Alonso Neves), luzes (Tomas Ribas) com marcações sensoriais,
discricionários elementos cenográficos (Miguel Pinto Guimarães) e efeitos
projecionais (Felipe Bond). Com destaque especial, aqui, para o metafórico diálogo que a moça tem diante
da tela, com o Marlon Brando de Um Bonde
Chamado Desejo, da peça de Tennessee Williams ao filme de Elia Kazan.
Peça dentro da peça numa montagem exemplar que vai, a partir
de sua aparente despretensão e descompromisso iniciais, arrastando a plateia com sua cuidadosa
estética, entre o simples, o ingênuo e o nostálgico, a um sensitivo aplauso final,
num espetáculo obrigatório, tendo de tudo para quem gosta do bom teatro.
Em 1989, Ingmar Bergman
levou à tela o enredo dramatúrgico Da Vida das Marionetes dando sequência, em sua filmografia, a uma tendência psicanalítica iniciada por Persona. O filme dividiu o público e a
crítica que o considerou controvertido e de menor peso em sua obra, pela
desmedida frieza na análise da crise existencial presente em cada personagem.
No filme, Bergman alterna
a predominância do vermelho sanguíneo, na cena inicial do assassinato, com os sombrios
tons de preto e branco na exposição da luta interior dos personagens.
Destacando, ainda, com sua marca estilística, grandes closes para penetrar mais fundo nos corações e mentes de cada um
deles.
Na reflexiva concepção de Guilherme Leme, acentuada pelos acordes
melancolizados da trilha (Marcelo H), no despojamento minimalista da cenografia
(Fernando Alexim) - uma mesa de aparência plástica longilínea - delineada pelas
sombras e luzes frias (Vitor Emanuel) sobre a face dos atores, sob elegante indumentária
(Ana Roque) em tons pastéis contrastando ocres e brancos. Conectando-se, enfim, em clima
de depoimentos confessionais diante de um tribunal, onde o papel do juiz confunde-se
com o do psiquiatra.
A partir do sádico assassinato de uma prostituta Ka (Cláudia Mauro), o protagonista Peter (Pedro Osório), bem sucedido nos
negócios mas conflituado no seu relacionamento com Katarina (Milena Toscano), busca uma saída na sala de um
psiquiatra Jensen (Luiz Furlanetto) que, na verdade é o amante de sua mulher.
Completando o quinteto atoral, Cordélia (Sandra Barsotti), a
super protetora mãe de Peter, além de um gay saindo do armário - Tim (Arnaldo Marques), como o íntimo
amigo de Katarina.
Desejos de afeto, em duelo permanente com a insegurança e o
sofrimento que provocam, criam um quadro instável de relacionamento entre cada
personagem, sintonizado sempre pelo medo e pela violência.
O "vazio iluminado” destes papéis alcança, em
contraponto, um sombrio retrato sem retoques da mente humana. A representação de
cada ator é medida pela angústia das revelações e, neste aspecto, há entre eles
um notável equilíbrio performático.
Com especial destaque para Pedro Osório, no seu modo de
imprimir uma nuance patológica à sua personificação desde a cena inicial ao
epílogo, e também no sotaque emotivo alcançado no revelador monólogo
homoerótico de Arnaldo Marques.
Enfim, um espetáculo de bela estética minimalista, em que
todo o staff conduz o público ao
clima ritualístico de uma coreografia macabra de vidas presas por um fio, como
no teatro de marionetes ironicamente enunciado pelo próprio Bergman:
“A morte me segue em
todo lugar. E talvez seja ela que puxa os barbantes, ela que me faz rir”...
Wagner Corrêa de Araújo
Nenhum comentário:
Postar um comentário