Da trama novelesca de Prosper Merimée à transposição operística de Georges Bizet, Carmen continuou inspirando diferenciais releituras e ressignificados para a clássica personagem de uma cigana, mitificada como símbolo precursor do grito afirmativo pelo direito e pela condição do feminino.
Revivida em inúmeras adaptações cinematográficas, ora fiéis ao romance e à ópera, ora em transubstanciais retomadas, indo de Lubitsch e Otto Preminger a Godard, de Rossi a Saura, sem deixar de citar a transformadora concepção de Peter Brook, do palco e para a tela, fora as inúmeras transposições coreográficas.
E, entre nós, lembrando a vanguardista criação cênica de Gerald Thomas – Carmen Com Filtro. Identificada sempre à contemporaneidade mas com um outro olhar, do aqui e do agora, aparece a mais recente teatralização do mito. A Carmen, sob comando diretorial de Nelson Baskerville, em criação dramatúrgica de Luiz Farina, com performance deste ao lado da atriz Natalia Gonsales e do ator/bailarino Vítor Vieira.
No conceitual inventivo de Brook houve prevalência dos elementos dramáticos originais do romance de Merimée, mas acentuados na busca cerimonial de arquétipos da tragédia grega para caracterizar a pulsão do feminino, entre a sexualidade e a violência.
Enquanto o retrato elaborado por Farina, além de se aproximar de Brook, pelo comportamental egocêntrico, amoral e antiético do casal Carmen (Natalia Gonsales) e José (Flávio Tolezani), dá uma particularíssima e libertária voz confessional à protagonista titular. Contando, ainda, com a intervenção do terceiro personagem e catalizador da tragédia terminal - o toureador, seu amante e consorte (Vitor Vieira), o pós José e razão do ódio deste último.
Embora persista uma certa similaridade hispânica na ambiência de tauromaquia da paisagem cenográfica (Marisa Bentivegna em dúplice oficio com seu incisivo desenho luminar), extensiva à indumentária (Leopoldo Pacheco) e aos caracteres gestuais flamencos (Fernanda Bueno), há um discreto convívio com a atemporalidade de microfones e guitarras elétricas.
Que completam o score sonoro, paralelo à microfonização dos depoimentos alterativos e esclarecedores deste conflituado casal. Com menor peso na progressão dramática do terceiro personagem mas funcional na sua representatividade de teatro/dança, por Vitor Vieira divididindo-se coreograficamente com os outros atores, em solos, duos e trios.
Ora através de um convicto Flavio Tolezano como um José de obsessiva postura machista conduzindo implacavelmente, em doentio ciúme, à tragicidade da solução final.
Ou, no contraponto crítico de Natália Gonsales numa Carmen mais visceralizada que a modelação literária da personagem. E que, antecipando a sabida terminalidade de seu destino, dá vazão aos seus argumentos impositivos contra o jugo masculino no favorecimento de sua postura pró assumido poliamor.
Num espetáculo construído artesanalmente por Nelson Baskerville para ser um jogo cênico de passionalidade selvagem, com energizada nuance sensorial, na atlética e erotizada fisicalidade de corpos seminus e na direta contundência de sua dialetação vocal.
Onde até as incidências musicais (Marcelo Pellegrini) radicalizam-se na fusão de acordes autorais. Da episódica citação do tema operístico do destino ao fatalismo melodramático da canção “Matei”(Vicente Celestino). Sintonizando, enfim, sua textualidade dramaturgica com a brasilidade e dimensionando-a, inclusive, com as lutas do poder feminino em nosso tempo.
Wagner Corrêa de Araújo
CARMEN está em cartaz no Teatro Poeira/Botafogo, de quinta a sábado, às 21h; domingo, às 19h. 70 minutos. Até 28 de outubro.
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