FOTOS/DALTON VALÉRIO |
Em época de tantas dissimulações, entre a hipocrisia e a falsidade, nas relações sociais
e nos embates políticos, não há melhor referencial que a oportuna representação
deste eterno jogo da verdade e da mentira, da honestidade e da vilania, tão presencial no emblemático personagem século XVII de
Molière.
Quão acostumados estamos à convivência com estas personificações
de mestres das falsas aparências avançando ferozes sobre nossa cotidiana intimidade.
Com visceral sagacidade ocupando nossas telas virtuais em artimanhas sedutoras,
inventariando paraísos terrestres tanto à esquerda quanto à direita.
E como escapar do risco de se deixar levar por estes “tartufos”
vestidos de imaginária decência, a
prometer mundos e fundos por trás de seus golpes, patifarias e despudores?
Como o rico patriarca familiar Orgonte que, sob as pulsões do enganoso ascético Tartufo e sua
indispensável Bíblia como disfarce, deixa-o
apropriar-se de seus bens ou, até mesmo, do abuso de querer se aproveitar das fragilidades e atributos femininos assediando as mulheres do lar - Dorina, Elmira e Mariana.
Em bom momento a Cia
Teatro Esplendor compartilha uma singular criação coletiva, a partir do
original de Molière, sob o seguro comando diretor de Bruce Gomlevsky que, além do pleno domínio do espetáculo, conta, ainda, com
a perspicaz ironia crítica de sua titulação “Um Tartufo”.
Numa releitura propositalmente não tão fiel, capaz de alterar
o seu epílogo e de inserir outros papeis, com um contexto ora de brasilidade
ora de citação simbológica do terrorismo contemporâneo.
E, antes de tudo, investigativa com a exclusão do verbalismo
vocal pela prevalência do gestual quase teatro/dança,
numa lembrança mimética tanto do cinema expressionista alemão (com o
referencial do Tartufo, 1926, de Murnau)
como do Chaplin clownesco.
Além, inclusive, da retomada/tributo à derradeira incursão de C. Stanislavsky, numa transposição deste
clássico da comédia, no substitutivo da palavra
pela linguagem do corpo. Através da individuação teatral no acionamento psicofísico
da performance, remetendo também ao ideário
de treinamento do ator grotowskiano.
Neste inusitado “Tartufo”
há que se destacar a artesania visual / estética da paisagem cênica ( Bel Lobo
e B. Gomlevsky), extensiva ao diferencial recorte indumentário (no dúplice empenho
de Maria Duartea e Márcia Pitanga) e à surpreendente nuance balinesa nos caracteres da mascaração (Mona Magalhães).
Também, num outro enfoque aproximativo da versão fílmica de Murnau,
através de um desenho de luz entre muitas sombras (Elisa Tandeta), como especular marca das obscuras
intencionalidades de Tartufo, é
transubstancial a exploração do dimensionamento psicológico e dos contornos masculinos do papel por uma atriz (Yasmin Gomlevsky).
Sintonizada com as
interpretações de um convicto elenco complementar (Gustavo Damasceno, Thiago
Guerrante, Ricardo Lopes, Patrícia Callai, Nuaj Del Fiol, Felipe de Barros e Gustavo
Luz). Identificando-se todos em cúmplice tarimba no ato de assumir
uma linha cênica com primado absoluto do sensorial, em espontânea mas exigente metaforização da
palavra pela corporeidade.
Preenchendo o vazio das sonoridades vocais, os graves acordes
da partitura sinfônica do croata Borut Krzisnik ampliam o clima de pesadelo e delírio
das ambiguidades morais e comportamentais na insensatez do personagem protagonista.
Enquanto alterativas pausas de silêncio, como a ecoar recursos estilísticos de hábito na
contemporaneidade da criação coreográfica e musical, ajudam a sustentar o
barroquismo do gestual e o gótico das faces e dos olhares em espetáculo revelador,
que chega na hora certa para tempos de incerteza...
Wagner Corrêa de Araújo
UM TARTUFO está em cartaz no Teatro Poeirinha/Botafogo, de
quarta a sábado, às 21h; domingo, às 19h. 110 minutos. Até 24 de outubro.
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