FOTOS/ROBERTO PONTES |
Grande Sertão: Veredas , de João Guimarães Rosa e Ulysses, de James Joyce, desafio e provocação em duas obras instigantes da literatura do século XX. Da Irlanda de Joyce e do Brasil do Rosa da prosa, a decifração cênica de um imponente inventário estético/linguístico esvaziou-se na versão fílmica de cada uma em seus respectivos países.
E, mesmo com uma cuidadosa adaptação para a televisão embora
sujeita aos ditames estilísticos deste veículo, só agora, enfim no plano da criação
teatral , o convite à travessia dramatúrgica das Veredas rosianas alcança um absoluto contraponto crítico por obra e graça
do comando diretorial de Bia Lessa.
Que em seu multi/conceitual
artístico, numa trajetória que leva ao referencial de assumir o “quero decifrar as coisas que são importantes”, soube como bem preservar o signo estético deste precioso legado literário/ficcional, mantendo ao mesmo tempo seu habitual teor investigativo no exercício do ofício diretor.
Seja através de um processo de instalação visual/plástica numa
arena/gaiola com seus bonecos de feltro (Fernando Mello da Costa), interativa
na cotidiana visitação diurna, ou pela quarta parede circundante na diária performance dramatúrgica noturna. No presencial do elenco em moto continuo na anti-divisão em cenas,
lembrando a inexistência da divisão em capítulos também na trama romanesca.
Interiorizando a relação livro/palco/plateia em inteligente
favorecimento intimista de uma sequencial
coreografia das palavras ecoando nas mentes de cada ouvinte/espectador, via fones
individuais(na dúplice mixagem de Fernando Hena/Daniel Turini).
Enriquecendo esta sucessiva envolvência de neologismos, regionalismos
e arcaísmos sintáticos e fonéticos, nas vozes atorais, com sonoridades
ambientalistas (bichos, pássaros, águas, ventos) , junto aos evocativos acordes
musicais pela trilha de Egberto Gismonti.
Aqui, “o sertão está
dentro da gente”, sensorial ou metafisico, na afetividade sublimada do Riobaldo(Caio Blat), valente jagunço
masculino, por um misterioso camarada Diadorim(Luiza Lemmertz), em sua feminilidade oculta sob vestes de brava jagunçagem. Mas “este mundo é muito misturado”, quando, ainda, prevalecem os
perigos de ódio no enfrentamento do inimigo Hermógenes( Leon Goes).
Evitando o apelo a uma
cenografia que remeta ao pitoresco e ao localismo paisagístico do sertão das Gerais, Bia Lessa vazou
o desenho de luz e privilegiou o acionamento dramático pelo ritmo coletivo de uma enérgica gestualidade.
Mimetizando atores personificados entre serem humanos, animais ou minerais, sem nunca deixar perder o
dimensionamento psicológico dos personagens. Sugerido assim, auditivamente, a partir da
textualidade ou também replicado na
fisicalidade sensitiva. Acentuado por nus frontais ou pela
neutralidade dos figurinos padronizados em tons negros/ocres (Sylvie Leblanc).
Nas episódicas possibilidades solistas, apesar das
diversidades de maturação profissional, há coesão e entrega na coadjuvância
grupal de Balbino de Paula, Clara Lessa, Daniel Passi, Elias de Castro, Leonardo
Miggiorin, Leon Goes, Lucas Oranmian. E de maiores chances para as atrizes Luiza Lemmertz, configurando mais platonicamente Diadorim, e Luisa Arraes
, especialmente no visceral ato de erotizada materialidade carnal ao lado de Riobaldo(Caio Blat).
Em pulsão alquímica, é Caio Blat que exorbita potencialidade
tanto na vocalização de um complexo linguajar de sintaxe prosódico/semântica, como na expressão do convicto comportamental de um personagem marcado pela
ambiguidade de elementos literários, antropológicos e míticos :
“O que não é Deus, é
estado do demônio. Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa
de existir para haver – a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma
conta de tudo”.
Wagner Corrêa de Araújo
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