FOTO/ARQUIVO FAMILIAR |
A complexa interiorização do universo de Clarice Lispector se
manifesta no reinventar a presença dramatúrgica da escritora, dividindo o seu
“estar só”, na visível escuta de seu
silêncio pelo outro, além do palco. Este
universo literário teatralizado vem deixando um precioso inventário estético e memorialístico.
Formatado, especialmente, em solilóquios/monólogos que vão,
entre outras incursões, de Beth Goulart e Esther Jablonski a Rita Elmôr . Passando,
ainda, por singularizadas visões, ora com pulsão sacro/ritualística por Eduardo
Wotzik , ora lírico/poéticas por Delson
Antunes.
Com vitoriosa trajetória tanto no aplauso do público como na cúmplice adesão da crítica, duas destas encenações estão de volta aos palcos cariocas.
Com vitoriosa trajetória tanto no aplauso do público como na cúmplice adesão da crítica, duas destas encenações estão de volta aos palcos cariocas.
I - CLARICE LISPECTOR E EU - O MUNDO NÃO É CHATO
E, assim, depois da performance primeira de 1998 em “Que Mistérios Tem Clarice” , ela retoma sua exteriorização das vivências de uma
representação, entre vida e mito,
verdade e performance, na desafiante fisicalidade de uma metafórica
escrita.
Desta vez, em “Clarice
Lispector & Eu – O Mundo Não É Chato”, Rita Elmôr transcende a fórmula
inicial, misturando fragmentos da escritora com suas próprias reflexões, num
espetáculo revelador em sua sobriedade e despretensão.
É como se Rita/Clarice fossem uma só, neste fluxo de frases
entre a dramaturgia autoral e o referencial literário, entre o “deixo-te
ser” e o “deixa-me ser “. E é esta troca, de poéticos subentendidos, que faz
irradiar a magia da proposta.
A prevalência do sensorial tem seu alcance ampliado nos
achados singulares das fotos de Clarice/
Rita projetadas ao fundo e no bom gosto do figurino (Mel Akerman). Além do
minimalismo da composição cenográfica e
dos efeitos visuais, entre sombras e luzes (na dupla concepção de Paulo
Denizot).
Onde um núcleo de
trama simples, concisa e consistente, conduzida pela direção
artesanal de Rubens Camelo, tem no sutil contraponto da
intérprete e da personagem, um tom confessional
pontuado entre o lírico humor e a verdade interior.
Capaz, enfim, de estabelecer carisma e empatia com o público numa das mais sensíveis
gramáticas cênicas da atual temporada.
II - MISSA PARA CLARICE-UM ESPETÁCULO SOBRE O HOMEM E SEU DEUS
FOTO/RICARDO BRAJTERMAN |
Os auto sacramentais e os mistérios , inicializados com as passagens evangélicas teatralizadas da vida de Cristo , ultrapassaram, especialmente a partir do período barroco, a sua mera singularidade de tradição religiosa medieval .
Sua simbologia alcança,
assim , uma composição dramática cerimonial de estrutura alegórica,
entre o sacro e o profano . Para celebrar o mundo, a natureza, os sentimentos
humanos, além de todos os dogmas e rituais religiosos, numa transcendente espiritualidade universal.
E é este o grande lance de dados da concepção dramatúrgica
de Eduardo Wotzik em Missa Para Clarice – Um Espetáculo Sobre o
Homem e Seu Deus. Ao desnudar a
profundeza filosófica e a subjetividade psicológica dos conceitos abstratos da
obra de Clarice Lispector, através de uma
extasiante liturgia cênica.
“Será que Deus sabe que
existe?”. Esta metafórica imagem é um enunciado dos segredos que marcam
Clarice e seu Deus. E já no prólogo do missal, a trajetória da santificação é
induzida pela mensagem amorosa da Macabéa , a protagonista/mártir de A
Hora da Estrela: “Na pobreza do corpo e do espírito eu toco na
santidade, eu que quero sentir o sopro do meu além”.
O celebrante Eduardo
Wotzik numa expressiva entrega sacrificial,com sua "batina”
atemporal de pregador, conduz o ritual “católico”. Instaurando, como um arauto
, de Elêusis ou de Cristo, a
cerimonia dos mistérios e milagres de Clarice.
Neste seu desempenho de ator/diretor/mensageiro do divino ,
manifestado na contemplação da palavra interior , ele conclama a participação
da plateia de fiéis nas preces da bem
aventurada Lispector –“Eu só rezo porque
palavras me sustentam. Eu só rezo porque
a palavra me maravilha”.
As atrizes Cristina Rudolph e Natally do Ó , como acólitos do diácono protagonista,
em suas breves intervenções, estabelecem um imanente clima dialético com os espectadores/devotos
das benditas espiritualidades da escritora.
O intensivo impulso criativo da direção de arte(Analu
Prestes) acentua cada instante cenográfico desta envolvente epifania da palavra literária e do gesto teatral sacralizados.
Onde o desenho das
luzes (Fernanda e Tiago Mantovani) alcança um
maneirismo barroquizante, entre brumas e sombras de refletores e velas.E
os acordes melancólicos da elegíaca Sinfonia n. 3 , de Gorécki, com seus cantos
de dor, conduzem ao clima místico
idealizado.
Capaz, enfim, de estabelecer um ritual coletivo palco/plateia
(sacro>espiritual>profano>físico) de comunhão estética e louvação, entre as parábolas e prédicas de
Clarice:
“Meu Deus, me dê a
coragem de viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites, todos vazios de
Tua presença... Faça com que eu seja a Tua amante humilde, entrelaçada a Ti em
êxtase... Receba em teus braços o meu pecado de pensar”.
Wagner
Corrêa de Araújo
CLARICE LISPECTOR E EU - O MUNDO NÃO É CHATO está em cartaz no Teatro Maison de
France,de sexta a domingo, às 19h30m;domingo,às 19h. 60 minutos. Até 11 de
março.
MISSA PARA CLARICE–UM ESPETÁCULO
SOBRE O HOMEM E SEU DEUS está em cartaz no Teatro Laura Alvim/Ipanema, sexta
e sábado, às 20h;domingo, às 19h30m. 80 minutos. Até 18 de março.
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