FOTOS/ ALBERTO MAURÍCIO |
“Fico atravessado nas
gargantas e nas ruas / habitante das sarjetas e periferias / convivo com os
imundos, impuros, renegados./ É com eles que me afirmo e não lamento,/ é deles
a voz que dá alento e sentido ao meu canto belo/e sofrido/ à minha dança leve/e
dolorida”.
A partir destes versos de Rodrigo Gerstner que inspiram o
primeiro módulo do espetáculo coreográfico, titularizado Malditos, e contextualizam, assim, a trilha sonora de Felipe Storino, o bailarino/coreógrafo
Bruno Cezario faz do solo “Fu” um instante de poesia e de susto
diante do retrocesso que ameaça especialmente a livre criação artística
brasileira.
Num contraponto critico à alma de um país em crise, ele entra
em cena portando uma lança indígena. Como se estabelecesse pontes entre um
signo arcaizante da formação pátria e a desconstrução da personalidade afetiva
nacional através da intolerância e do não à inclusão das minorias.
Com uma malha em tons róseos, um cabelo black power e uma sandália de dourado glitter, sua identidade psicofísica e sua sexualidade sem amarras,
se estabelecem entre pausas e silêncios.
Provocando os
espectadores com um egocêntrico fone de ouvido que só ele escuta. Em incisivo
recado à indiferença individualista do homem contemporâneo conectado/condenado, obsessivamente,
à reclusão nas celas de seu universo virtual.
Numa aposta, aqui, de que a dança não é mera representação
mimética da realidade mas expressão da verdade
de seu tempo. Capaz sempre de traduzir o humano e o seu meio, na pulsão
físico/emotiva do fazer de cada gesto coreográfico um ato transformador.
Missão inicializada, pela Renato Vieira Cia de Dança, a partir de uma trilogia questionadora
que além de sua continuidade, agora, com Malditos,
prosseguirá com outra obra para 2020. Sempre na busca de significativas
tematizações da contemporaneidade, no entremeio de substantivo referencial
crítico da poesia e da literatura.
E, desta vez, no substrato do inventário memorial de sombrios anos por nós vividos, alertando sobre
riscos censórios e a exacerbada onda
preconceituosa, de perceptível proximidade do atual e controverso momento politico brasileiro.
Assim transparece a gênese do grito roqueiro de Janis Joplin
na sua clássica versão de Summertime, a
que Soraya Bastos, na sua tradução pelo movimento, imprime organicidade dionisíaca. Ou a essencialista entrega do elenco masculino a uma vigorosa plasticidade
física em paisagem cênica escultórica, no suporte de potencial trilha com
antológicos acordes do rock anos 70.
Enquanto em Fu luzes invasivas (Binho Schaeffer) vazam sobre o palco e sobre a plateia, alterativos
efeitos luminares/visuais pontuam ora
passagens solarizadas com Soraya Bastos, ora estetizados recortes grupais, com
a convicta representação dos bailarinos, em malhas negras e torsos nus, Felipe Padilha, Hugo Lopes e Wallace Guimarães.
Onde um sempre artesanal comando coreográfico e direcional de
Renato Vieira faz com que Malditos abra em brilhante performance corporal, sem deixar de lado a postulação ideológica, a temporada 2019 de
dança nos palcos cariocas.
Wagner Corrêa de Araújo
MALDITOS, c/ a Renato Vieira Cia. de Dança, está em cartaz no Sesc Copacabana((Mezanino), de sexta a domingo, às 20h. 50 minutos. Até 27 de janeiro.
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