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FOTOS/MARCELO ALMEIDA |
O reflexo especular de Narciso nas águas de um rio numa fugaz
pulsão amorosa e idólatra por sua própria imagem traduziria, isto sim, o eterno
embate no difícil suporte da condição humana diante da adversidade de sua
própria finitude.
Como no contraponto ao relato mitológico, pelo poeta grego
Pausânias, de que o espelhar narcísico na sua feroz egolatria é, na verdade, a
melancólica constatação de que ali está é a sua gêmea alma morta, contextualizada
no arquétipo fatalista de todas as outras.
A ambiguidade de não sermos por estarmos para sempre
condenados ao não ser da mortalidade, na coercitiva submissão do sentido de que só somos a partir
da existência do outro. Ou do que ele vê em nós, como o testemunho de que apenas
o oficio artístico configuraria um ato de desafio a este axioma empírico.
E é a partir desta constatação que, mais uma vez, o processo
investigativo do dramaturgo franco-uruguaio Sergio Blanco é retomado, após a
recente versão de Tebas Land em palcos cariocas. Agora, com A Ira de Narciso, em sua primeira
montagem brasileira, com o protagonismo de Gilberto Gawronski e singularizadas intervenções físicas de Renato Krueger, sob
comando diretorial de Yara de Novaes.
Dando continuidade ao que ele denomina de autoficção, a partir de classificação literária dos anos setenta, para experimentos linguístico/narrativos de relatos, simultaneamente, autobiográficos e ficcionais. E que Sergio Blanco assume numa leitura teatral que avança nos
limites entre a verdade e a mentira, delírio e realidade, com perceptíveis
nuances de mistério e suspense.
Onde este instigante jogo cênico, ao mesmo tempo, confunde,
provoca e obriga o espectador a acionar seus mecanismos mentais de alerta contra
a mera acomodação, pela significância de incisivo mergulho politico/filosófico na
decifração da problemática da contemporaneidade.
Num realístico ou imaginário pretexto de contar a viagem de Sergio Blanco sendo Gilberto Gawronski a Ljubljana, na Eslovênia, para uma conferência autoral. Com o
olhar armado no mito de Narciso, num desdobrar-se labiríntico/confessional entre
ser o dramaturgo e o ator sendo, ao mesmo tempo, o narrador em primeira pessoa.
Ampliando suas vozes em propícias citações de Rimbaud e Heidegger a Deleuze, num discurso em compasso acadêmico subvertido no entremeio de
passagens nuas e cruas sobre os excitantes encontros sexuais, em clima de aventura
e risco, com Igor um jovem esloveno, entre um parque e o quarto de hotel.
Conduzindo a investigações policiais logo
após a descoberta de estranhos traços de sangue no carpete.
Dando alento ao pensar de Sergio Blanco - “a autoficção triunfa quanto mais engana", Yara de Novaes imprime irrestrita e enérgica
conexão entre a textualidade (na apurada
versão de Celso Curi) e a performance, em tempo de desnudamento das
fronteiras de busca do eu no outro.
Afinando-se, ainda, na funcionalidade estética dos elementos
cenográficos (André Cortez) e na indumentária (Fábio Namatame),potencializados
nas marcações luminares (Wagner Antonio) sugestionando ambiências de alegoria
ou nas incidências alterativas de acordes bachianos
e sonoridades percussivas (Dr. Morris).
Este conflito ambíguo da racionalidade e do fantasioso, em rica dialetação com o efêmero
existencial e a perpetuidade pelo legado artístico, converge no carismático aporte
sensorial, no dimensionamento psicológico e na presencial fisicalidade
alcançada pela representação de Gilberto Gawronski.
Em espetáculo que impressiona tanto pelo senso crítico/reflexivo
como pelo inusitado de seu conceitual dramatúrgico. Capaz de fascinar pelo
investimento em novos caminhos e transcender-se, enfim, em bravo instante da
gramática cênica.
Wagner Corrêa de Araújo
A IRA DE NARCISO está em cartaz no Teatro Poeirinha/Botafogo, terças e quartas, às 21h. 100 minutos. Até 20 de fevereiro.
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