No grande deserto que se tornou a temporada coreográfica nos palcos
cariocas, tanto no clássico como no contemporâneo, com uma crise que desafia a
produção de novos espetáculos, o anúncio de duas semanas com a Focus Cia de Dança traz a feliz
equivalência de um oásis. Tanto pela resistência como pelo desafio em manter,
ali, acesa a autenticidade inventiva da dança contemporânea.
Em seus quase vinte anos, esta Cia., através de seu coreógrafo/diretor Alex Neoral e de seu
consistente elenco de oito bailarinos, vem priorizando um alentado
desdobrar-se na busca de novas perspectivas para a criação coreográfica brasileira.
Novamente reunidos, sob o comando mor de A. Neoral (no dúplice
oficio de atuação ao lado deles), aqui estão Carolina de Sá, Cosme Gregory,
José Villaça, Márcio Jahú, Marina Teixeira, Monise Marques e Roberta Busoni, para uma singular performance titulada, bem a propósito por seu caráter
antológico/retrospectivo, de Still Reich.
Esta base sonora/musical em torno das avançadas tessituras
composicionais do americano Steve Reich está alinhada à atração maior que sua
obra vem exercendo há gerações sobre a excelência da dança contemporânea, indo
de Jerome Robbins a Anne Teresa de Keersmaeker, passando pela trajetória de Maurice Bejart, Alvin Ailey e Jiri Kylan.
Inicializado como bateirista de jazz /rock anos 60/70, Steve
Reich é um emblemático compositor, não só como o precursor/inventor do minimalismo
musical, como pela permanente evolução de sua linguagem artística. E que, aqui, tem
bela exemplificação nestas três peças
apresentadas pela Focus Cia de Dança.
A performance ininterrupta, com o precioso suporte do desenho de luz (Binho Scheffer), assinalada por episódicas pausas sonoro/luminares, é aberta pela retomada da obra estreada
pela Cia em Stuttgart (2008), inspirando-se nominalmente na partitura Pathways de S. Reich.
Onde, na habitualidade do estruturalismo fragmentário da
composição original, os oito bailarinos conduzem a representação, ora na
sequencialidade energizada de entradas e saídas, ora nas sensoriais
formações em duos com reflexo especular em
quartetos .
Interpelando falas numéricas, no entremeio de uma rígida gestualidade
de padrões geometrizados, potencializando as relações da fisicalidade dos bailarinos
com o preenchimento do espaço cênico.
Seguindo–se o desenho coreográfico de Trilhas, com o substrato reichiano de Different Trains-After the War, dimensionando as projeções da
corporeidade em instantâneos avanços de um tempo gestual direcionado à pulsão imediata do próximo instante. Numa prevalência
do puro movimento abstrato, longe de qualquer referencial à linearidade de um
discurso narrativo.
Mas é o recorte do terceiro movimento – Keta – inspirado na composição de Reich mais transposta para o
palco coreográfico – Drumming ,
classificada autoralmente pelo estilo phase
work, que possibilita maior impacto e cumplicidade palco/plateia.
Não só por sua reiterativa espiralidade em torno de uma
mesmo fraseado sonoro, com suporte percussivo em primitivos cultos tribais
africanos ou, mais ainda, por seu embate
ritualístico, de sacralidade erótico/profana.
E que Alex Neoral visualiza em viscerais fraseados coreográficos
que os intérpretes masculinos e femininos equalizam, na plasticidade
sensualizada de peitorais nus, e na contínua e feroz velocidade de corpos em
movimento.
No alcance duma celebração exorcística dos encontros corpóreos, remissiva às ancestralidades e que os vai atirando, exaustivamente, ao solo em metafórico ato sacrifical, numa quase releitura, com olhar
armado na contemporaneidade, do emblemático inventário estético da sagração stravinskyana.
Wagner Corrêa de Araújo
STILL REICH/FOCUS CIA DE DANÇA está em cartaz no Teatro Cacilda Becker/Catete, de quinta a sábado, às 20h; domingo, às 18h. 60 minutos. Até 23 de setembro.
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