ZILDA ARNS – A DONA DOS LÍRIOS : GUERREIRA E MÁRTIR POR UM IDEAL


FOTOS / DALTON VALÉRIO

Lutou por um ideal igualitário e morreu em ação, fazendo o que mais amava: o bem". Assim ela foi definida pelo  jornalista e escritor Ernesto Rodrigues no livro “Zilda Arns – Uma Biografia”.

De descendência alemã, a catarinense que quase recebeu um Premio Nobel da Paz, dividiu sua trajetória existencial, da mãe de cinco filhos à pediatra, sanitarista, educadora e religiosa, dedicando todos estes ofícios à sua missão mor – dar amor, cuidar e lutar pela criança desamparada, ou pela orfandade ou pela fome, ora pela violência ora à beira da mortalidade.

Não hesitando em desafiar quaisquer obstáculos pela prevalência de suas ideias e ações. Ainda que fosse combatida, de um lado, por seu conservadorismo contra posicionamentos feministas, pró aborto por exemplo. Mas avançada ideologicamente, por outro, ao se alinhar à opção preferencial pelos pobres propugnada por seu irmão Dom Paulo Evaristo Arns.

Mesmo ousando passar por cima de regras comportamentais burocráticas do poder politico ou de Estado pelo alcance de seu propósito maior. Afinal, a sua Pastoral da Criança era o passaporte oficial para abrir tanto as portas do Planalto como as do Vaticano.

E é na reconstrução desta  trajetória de bravura e desprendimento que Simone Kalil e Luiz Antônio Rocha retomam a parceria, de belo resultado em Brimas, com uma dúplice concepção dramatúrgica para Zilda Arns – A Dona dos Lírios, dividindo-se entre a performance solo da atriz e o comando diretorial.

Em proposta de releitura teatral de uma vida e de uma obra, com sabor poético e sensorial, com um olhar otimista e  uma sutil nuance de humor, mas sem deixar de lado a pulsão reflexiva e o incentivo referencial.

Tanto a um Brasil alegre pela riqueza nativista de costumes como a de um País lacerado por suas adversidades sociais onde a criança é a vitima mais frágil, sendo assim razão primeira e mote condutor do trabalho missionário de Dona Zilda Arns.

Na concepção cenográfica (Luiz Antônio Rocha / Eduardo Albini) que recria uma paisagem de sonho e de nostalgia com traços pictóricos lembrando a pureza branca dos lírios ou o colorido das asas das borboletas.

Ampliados na ambiência pastoral do desenho de luz (Ricardo Lyra) e nas sensitivas intervenções composicionais e sonoras (Beá) em clima new age, remetendo a ruídos da natureza. Tudo, enfim, enriquecido pelas modulações gestuais (Roberto Rodrigues) e a simplicidade funcional dos figurinos ( Caká Oliveira).

Sintonizada em absoluta acepção nos contornos confessionais do personagem, Simone Kalil surpreende pelo dimensionamento psicológico e pela luminosidade afetiva que imprime a um conceitual quase de teatro documentário.

Sóbria e despretensiosa mas capaz, na concisa gramatica cênica pelas mãos de Luiz Antônio Rocha, de comover pela sua representação, entre um relato verista e a poetização de um inventário existencial.

No contraponto de uma narrativa de ferozes embates e de um trágico epílogo, levando Dona Zilda Arns a ser  mártir de um evento sísmico, enquanto é tornada símbolo de combate às insensatezes da condição humana.

                                            Wagner Corrêa de Araújo


ZILDA ARNS – A DONA DOS LÍRIOS, está em cartaz no Teatro Cândido Mendes, de sexta a domingo, às 20h. 60 minutos. Até 4 de novembro.

THIAGO ARANCAM – BELA PRIMAVERA : POP/ÓPERA EM SHOW CENOGRÁFICO

FOTOS DIVULGAÇÃO/ZARELLA NETO

Desde o inaugural concerto, em 1990, dos três tenores (CarrerasDomingoPavarotti) reunindo em performances solistas e grupais, de características nitidamente midiáticas, árias de ópera e hits do musical e do pop/rock, esta fórmula vem quebrando as fronteiras entre o clássico e a música fora deste contexto.

O que, se de um lado impulsiona comercialmente a carreira de cantores de substrato lírico, por outro enfrenta os riscos do apelo fácil e do descartável. Provocando inclusive, em alguns casos, o afastamento dos palcos operísticos, agravado em países como o nosso onde o gênero sobrevive a duras penas.

Impulsionado por seu revelador talento vocal, o paulista Thiago Arancam vem desenvolvendo uma ascendente carreira como tenor spinto, trafegando entre o lírico e o dramático. Favorecido por apurados estudos na Academia do Alla Scala (Milão) e por elogiadas performances (inclusive sob a regência de Placido Domingo).

Num repertório com prevalência do verismo italiano entre Puccini e Mascagni ao romantismo tardio de  Alfano, inclusive com uma raramente apresentada obra deste último – Cyrano de Bergerac, onde Arancam atendeu a outro chamado de Placido Domingo. Mas com incursões também em Bizet, onde protagonizou Carmen em apresentações no exterior, embora tenha enfrentado vaias do público e a  ira da crítica argentina quando  foi o Don José no Colón.

Em nossos palcos estreou em 2011, no Municipal carioca, com uma conceituada Tosca e em Carmen e Fosca (Carlos Gomes), em 2014 e 2016, respectivamente no Municipal paulista. Além de seus inúmeros concertos/shows que, nos últimos anos, passaram a incluir programas diversificados. Do canto lírico extensivo, na sua estética interpretativa, ao cancioneiro popular internacional de caráter antológico/comercial.

Nas constantes idas e vindas, entre a Europa e o Brasil, vem lançando bem sucedidas gravações nesta linhagem mais vendável. E, agora, avança em sua carreira com um primeiro musical – O Fantasma da Ópera. Produção paulista que protagoniza por indicação seletiva autoral (Andrew Lloyd Webber), num dos maiores êxitos da atual temporada.

Na sua mais recente tour nacional, titulada Bela Primavera, mantém sua opção vocal em torno do pop/lírico, com alguns clássicos do rock, canções italianas e brasileiras. Ora com Who Wants to Live Forever, ora com How Can I Go On, onde faz um tributo remissivo ao celebrado dueto Fred Mercury/Montsserat Caballé, pela recente morte da soprano espanhola. Ou, ainda com a dúplice atuação dele e da soprano (Carmen Monarcha), incluindo o tema titular e o celebrado All I Ask of You de Fantasma da Opera.


Mas, para quem já assistiu à sua recente montagem e que Arancam integra como tenor/ator, há um arroubo incisivo e contínuo da sua parte e menor convencimento, com um excessivo vibrato, da cantora convidada para sua versão no show Bela Primavera. Havendo distanciamento crítico na atuação, se comparada for à do elenco protagonista feminino no musical paulista, e mais acerto dela nos duetos do Queen.

De perceptível envolvência qualitativa são, aqui, as atuações de Thiago Arancam, embora sujeitas às naturais oscilações de súbitas passagem de fraseados graves para as extensões mais agudas do registro lírico, ao atribuir suas nuances vocais ao canto popular. Com adequada funcionalidade, especialmente em Hallelujah (Leonard Cohen), Crazy ( Seal), Viva La Vida (Coldplay). E de mais limitado alcance no pout pourri de música latina.

À base de uma boa composição orquestral (sob comando de Yacoce Simões) reunindo cordas e sopros, com dez integrantes, paralela a uma banda de composição mais roqueira (bateria, guitarra e teclados). Numa potencializada concepção de luzes e cores (Irma Vidal/VJ Gabiru) conectando o psicodelismo de efeitos luminares a estetizantes projeções 3D.

Onde o grande momento acaba sendo mesmo o de uma esperada rentrée no universo da ópera, nos pedidos do bis. Afinal, quase como uma espécie de recado para a volta ao gênero básico que projetou Arancam além fronteiras. Com visceral brilho de tessitura vocal no Nessun Dorma e que, unindo seu energizado volume ao presencial expressivo, culmina encerrando o espetáculo, numa cúmplice adesão palco/plateia.

                                                  Wagner Corrêa de Araújo


THIAGO ARANCAM - BELA PRIMAVERA - Pop/ópera show cenográfico.  Em turnê nacional - BH, Curitiba, Rio de Janeiro, Salvador, SP.  120 Minutos Até novembro / 2018.

TEATRO DOS 4 : OBRIGATÓRIA LIÇÃO DE TEATRO PARA INICIADOS E INICIANTES


CEDOC/FUNARTE - AS LÁGRIMAS AMARGAS DE PETRA VON KANT

Como um livro/tese universitária, Teatro dos 4 – A Cerimônia do Adeus do Teatro Moderno, do jornalista, professor, critico teatral e de cinema Daniel Schenker, é um modelo de equalizado teor investigativo e elaborada escritura, de fácil acessibilidade a todos os tipos de leitores.

Longe do padrão hermético de considerável parte de obras similares, com finalidades de ensaio acadêmico para graduações de mestrado e doutorado, aqui prevalece uma linguagem de funcionalidade direta, capaz de criar a envolvência lúdica de uma quase narrativa literária.

De diversificada destinação, desde quem labuta no meio teatral, da representação nos palcos à didática nas salas de aula, como também aos que se dedicam ao oficio critico e aos estudos do tema como manifestação artística ou lazer sócio/cultural.

Com exposição de acentuada clareza, resultado certamente de anos de profissionalismo jornalístico de seu autor, mas sem nunca cair no superficialismo de mera reportagem histórica e registro cronológico de um momento  básico do teatro carioca.

Situando uma fase de rica pulsão criativa que vai da fundação do espaço – nominado Teatro dos 4 pelo acionamento produtor e diretorial de seus mentores (Sérgio Britto, Paulo Mamede e Mimina Roveda) – entre os anos 1978 a 1993, num processo de ascensão e queda.

Com uma teorização transmutada na praticidade pela valoração do encenador, sabendo preservar a força original de um repertório de clássicos da dramaturgia universal de todas as épocas mas com uma visão armada na contemporaneidade.

Da tradição à modernidade, indo de Shakespeare e Tchekhov a Pirandello e Beckett, de Eduardo de Filippo a Fassbinder, com algumas incursões pela criação brasileira, priorizada na peça de Mauro Rasi que serve de mote titular e simbológico à publicação.

Com o sustento de um elenco de craques - Fernanda Montenegro, Nathalia Timberg, Renata Sorrah, Yara Amaral, Italo Rossi, Ney Lartorraca, Jose Wilker, Sergio Britto. E na viabilização de montagens antológicas - “As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant”, “Sábado, Domingo e Segunda”, “Quatro Vezes Beckett, “A Cerimônia do Adeus”.

Conectando todo este dimensionamento de uma época rara e qualitativa da cena carioca com um denso contexto universal, das tendências e estilos dramatúrgicos, direção e performance, aos elementos tecno/cenográficos.

Identificando-os na própria progressividade teatral do século XX em moldes nacionais, através de  grupos precursores como o TBC, Arena, Oficina, no élan transformador das novas experiências e perspectivas abertas pela geração mor do Teatro dos 4.

Numa obra bibliográfica cujo alcance vai além da análise e da reconstituição historicista de uma emblemática passagem conceitual do espetáculo brasileiro. Afirmando-se, enfim, pela valiosa autenticidade documentária e pelo antenado olhar autoral, como significativa contribuição para o inventário arqueológico do saber teatral.  

                                            Wagner Corrêa de Araújo
                                         
                                                 

“TEATRO DOS QUATRO – A CERIMÔNIA DO ADEUS DO TEATRO MODERNO”, livro de DANIEL SCHENKER. Editôra 7 Letras. 416 páginas, R$ 65 .

MEMÓRIAS DO ESQUECIMENTO : ENTRE O PESADELO E A CATARSE

FOTOS/ DALTON VALÉRIO

O dever do artista não é o de mostrar como são as coisas verdadeiras e sim o de mostrar como verdadeiramente são as coisas”. ( Bertolt Brecht).

Princípio filosófico e estético do teatro político brechtiano, aplicável à provocante versão titular para o palco de Memórias do Esquecimento, do premiado livro do jornalista e escritor Flávio Tavares, na dramaturgia direcional e performática de Bruce Gomlevsky.

Publicado e premiado na passagem para o terceiro milênio, emblematicamente representou a redenção para o pesadelo que seu autor viveu como vítima da ditadura militar, desde a sua primeira prisão (1964), seguida de outros amargos confinamentos entre o Brasil e o Uruguai, perda da cidadania, exílios e, enfim, a anistia,  quinze anos depois.

Relato doloroso pelo detalhamento descritivo das horas de tortura física e psicológica diante dos algozes nas prisões brasileiras e uruguaias. Impressionando por seu discurso, desnudado de quaisquer artifícios de edulcoração, enunciativo dos mecanismos de opressão nos subterrâneos da longa jornada noite a dentro de um regime extremista.

Ao assumir sua dúplice adaptação dramatúrgica (ao lado do valioso suporte de Daniela Pereira de Carvalho), Bruce Gomlevsky alcança um significativo substrato cênico, de corajoso psicologismo e energizada fisicalidade, no verismo cru e na visceral interatividade com aquelas trágicas passagens da vida de Flávio Tavares.

A ambiência solitária, sugestionando uma claustrofóbica câmara de tortura, com ausência de quaisquer artifícios salvo uma cadeira, é delineada por um desenho de luz focal entre sombras (Russinho), de incisivo efeito sobre a face do ator (B. Gomlevsky) paramentado com sóbrio e cinzento recorte indumentário (Maria Duarte). 

Na impactante progressividade dramática de um corpo imóvel, com sequenciais variações dos olhares de espanto às expressões de massacre, se estabelece a narrativa de resistência de um sobrevivente resgatado das adversidades do passado pelo inventário memorialista.

Remetendo a referenciais do teatro documentário de Erwin Piscator e do teatro político de Bertolt Brecht, com seu engajamento na representação da insensatez do  poder e da avassaladora coação sobre a liberdade das escolhas ideológicas, na difícil dicotomia comportamental entre a obediência ou a rebelião.

De presencial contraponto critico, demolindo qualquer acomodação lúdica do espectador e obrigando-o a se posicionar reflexivamente. Em convicto distanciamento de quaisquer mistificações e devaneios, numa teatralidade com intervenção direta em nossos  corações e mentes.

Mais que precisa para tempos de perigosa desconstrução de perspectivas politicas, entre ameaças totalitárias e utópicas soluções, onde o seu enfrentamento está no redefinir verdadeiramente as coisas e no começo transformador de uma subversiva revolução dentro de nós.

                                              Wagner Corrêa de Araújo


MEMÓRIAS DO ESQUECIMENTO está em cartaz no Teatro Poeirinha/Botafogo, de quinta a sábado, às 21h; domingo, terça e quarta, às 19h. 90 minutos. Até 28 de outubro.

EVOLUTION DANCE THEATER – NIGHT GARDEN : COREOGRAFIA CIBERNÉTICA



Há sempre uma grande polêmica quando a tecnologia compartilha com a criação coreográfica. Até onde podem chegar os efeitos eletrônicos, entre a imagem e o som, para manter íntegra esta relação corpo orgânico e corpo virtual sem que a dança fique em segundo plano ou deixe de ser uma expressão artística pura?

Ainda longe de nosso tempo de progressivo sistema virtual, experiências iniciais foram realizadas entre os anos 60/70 por Alwin Nikolais Dance Theater com suas inserções visuais que tornavam irreconhecíveis os bailarinos sob luzes, projeções, figurinos e objetos, quais seres espaciais ou microrganismos.

Tal tendência, ao mesmo tempo que atraía, gerava protestos de grande parte da crítica, público e artistas, pela perda do imanente caráter de dança pela dança. Esta, então, exemplificada pela força inventiva e vanguardista das criações, por exemplo, de Merce Cunninghan que, aliado à música concreta de John Cage, privilegiava o gestual coreográfico.

Outros grupos , como o Momix , se tornaram protótipos desta tendência de integração da dança com os mais ousados recursos digitais transformando corpos em silhuetas videográficas.

Numa perspectiva de sincronicidade, a cia. italiana Evolution Dance Theater vem apresentando seus espetáculos de abolição de fronteiras entre dança, atletismo, ilusionismo, ainda que este mix artístico, com seus superlativos efeitos cinéticos, não se incline ao favorecimento total da criação coreográfica.


Onde, pelo dimensionamento cenográfico, o excesso de manipulações imagéticas revela sua fragilidade quando o palco, em rápidas passagens, desnudado de artifícios tecnológicos, revela bailarinos numa gestualidade repetitiva, em atletismo rítmico e quase ginástico, sem grande alcance expressivo como proposta dançante.

Por outro lado, pelo experimentalismo de linguagens, Night Garden, o seu mais recente espetáculonada mais faz que dar continuidade, reiterativa e sem  nenhum avanço na valoração maior da dança, ao anterior Firefly, aqui apresentado em 2015.

Se chega a impressionar, ora como uma instalação plástica performática, ora por sua nuance de celebração ritualística entre ciência física e dança, teatro de sombras e acrobacia circense, realismo e magia, insiste na sua proposta de prevalência da tecnologia em detrimento de uma maior relevância na estética coreográfica pura.

Embora seu próprio mentor/coreógrafo Anthony Heinl reconheça ali mais como um cruzamento de linguagens cibernético/artísticas justificando,assim, este direcionamento conceptivo:“a ausência de uma linguagem específica imprime uma marca universal aos trabalhos”.

Na preferência por quadros tecnocênicos que envolvam noite e escuridão que, por sua vez, facilitam o jogo dos efeitos visuais entre sombras. Ainda que se transforme a fisicalidade de seus integrantes, entre bailarinos e acrobatas, em meros esboços pictóricos.

O que só é quebrado em partes episódicas que, de forma alguma, propiciam qualquer teor investigativo pela dança, num gestualismo mais próximo do acrobático/circense que da autenticidade da criação coreográfica.

Na qual esta não seja apenas um dos elementos de sustentação de um show de ilusionismo para os olhos, mas sem qualquer apelo para a estética sensorial da contemporaneidade artística.

Capaz, aí sim, de provocar envolvência emotiva, por seu direcionamento de energizada pulsão coreográfica contextualizada no substrato de uma livre criatividade “high tech”.

                                              Wagner Corrêa de Araújo



Evolution Dance Theater- Night Garden está em cartaz no Theatro Municipal/RJ, nesta quarta e quinta, 17 e 18/10, às 20h. 90 minutos. Seguindo em temporada para São Paulo, Belo Horizonte, Curitiba e Salvador.

CARMEN : SOB RESSIGNIFICANTE LEITURA À LUZ DO FEMINISMO CONTEMPORÂNEO

FOTOS/RONALDO GUTIERREZ

Da trama novelesca de Prosper Merimée à transposição operística de Georges Bizet, Carmen continuou inspirando diferenciais releituras e ressignificados para a clássica personagem de uma cigana, mitificada como símbolo precursor do grito afirmativo pelo direito e pela condição do feminino.

Revivida em inúmeras adaptações cinematográficas, ora fiéis ao romance e à ópera, ora em transubstanciais retomadas, indo de Lubitsch e Otto Preminger a Godard, de Rossi a Saura, sem deixar de citar a transformadora concepção de Peter Brook, do palco e para a tela, fora as inúmeras transposições coreográficas.

E, entre nós, lembrando a vanguardista criação cênica de Gerald Thomas – Carmen Com Filtro. Identificada sempre à contemporaneidade mas com um outro olhar, do aqui e do agora, aparece a mais recente teatralização do mito. A Carmen, sob comando diretorial de Nelson Baskerville, em criação dramatúrgica de Luiz Farina, com performance deste ao lado da atriz Natalia Gonsales e do ator/bailarino Vítor Vieira.

No conceitual inventivo de Brook houve prevalência dos elementos dramáticos originais do romance de Merimée, mas acentuados na busca cerimonial de arquétipos da tragédia grega para caracterizar a pulsão do feminino, entre a sexualidade e a violência.

Enquanto o retrato elaborado por Farina, além de se aproximar de Brook, pelo comportamental egocêntrico, amoral e antiético do casal Carmen (Natalia Gonsales) e José (Flávio Tolezani), dá uma particularíssima e libertária voz confessional à protagonista titular. Contando, ainda, com a intervenção  do terceiro personagem e catalizador da tragédia terminal - o toureador, seu amante e consorte (Vitor Vieira), o pós José e razão do ódio deste último.

Embora persista uma certa similaridade hispânica na ambiência de tauromaquia da paisagem cenográfica (Marisa Bentivegna em dúplice oficio com seu incisivo desenho luminar), extensiva à indumentária (Leopoldo Pacheco) e aos caracteres gestuais flamencos (Fernanda Bueno), há um discreto convívio com a atemporalidade de microfones e guitarras elétricas.

Que completam o score sonoro, paralelo à microfonização dos depoimentos alterativos  e esclarecedores deste conflituado casal. Com menor peso na progressão dramática do terceiro personagem mas funcional na sua representatividade de teatro/dança, por Vitor Vieira divididindo-se coreograficamente com os outros atores, em solos, duos e trios.  

Ora através de um convicto Flavio Tolezano como um José de obsessiva postura machista conduzindo implacavelmente, em  doentio ciúme, à tragicidade da solução final.

Ou, no contraponto crítico de Natália Gonsales numa Carmen mais visceralizada que a  modelação literária da personagem. E que, antecipando a sabida terminalidade de seu destino, dá vazão aos seus argumentos impositivos contra o jugo masculino no favorecimento de sua postura pró assumido poliamor.

Num espetáculo construído artesanalmente por Nelson Baskerville para ser um jogo cênico de passionalidade selvagem, com energizada nuance sensorial, na atlética e erotizada fisicalidade de corpos seminus e na direta contundência de sua dialetação vocal.

Onde até as incidências musicais (Marcelo Pellegrini) radicalizam-se na fusão de acordes autorais. Da episódica citação do tema operístico do destino ao fatalismo melodramático da canção “Matei”(Vicente Celestino). Sintonizando, enfim, sua textualidade dramaturgica com a brasilidade e dimensionando-a, inclusive, com as lutas do poder feminino em nosso tempo.

                                         Wagner Corrêa de Araújo


CARMEN está em cartaz no Teatro Poeira/Botafogo, de quinta a sábado, às 21h; domingo, às 19h. 70 minutos.  Até 28 de outubro.


UM TARTUFO : OPORTUNO LIBELO CONTRA A HIPOCRISIA


FOTOS/DALTON VALÉRIO

Em época de tantas dissimulações, entre a  hipocrisia e a falsidade, nas relações sociais e nos embates políticos, não há melhor referencial que a oportuna representação deste eterno jogo da verdade e da mentira, da honestidade e da vilania, tão  presencial no emblemático personagem século XVII de Molière.

Quão acostumados estamos à convivência com estas personificações de mestres das falsas aparências avançando ferozes sobre nossa cotidiana intimidade. Com visceral sagacidade ocupando nossas telas virtuais em artimanhas sedutoras, inventariando paraísos terrestres tanto à esquerda quanto à direita.

E como escapar do risco de se deixar levar por estes “tartufos” vestidos de imaginária decência, a prometer mundos e fundos por trás de seus golpes, patifarias e despudores?

Como o rico patriarca familiar Orgonte que, sob as pulsões do enganoso ascético Tartufo e sua indispensável Bíblia como disfarce, deixa-o apropriar-se de seus bens ou, até mesmo, do abuso de querer se aproveitar das fragilidades e atributos femininos assediando as mulheres do lar - Dorina, Elmira e Mariana.

Em bom momento a Cia Teatro Esplendor compartilha uma singular criação coletiva, a partir do original de Molière, sob o seguro comando diretor de Bruce Gomlevsky que, além do pleno  domínio do espetáculo, conta, ainda, com a perspicaz ironia crítica de sua titulação “Um Tartufo”.

Numa releitura propositalmente não tão fiel, capaz de alterar o seu epílogo e de inserir outros papeis, com um contexto ora de brasilidade ora de citação simbológica do terrorismo contemporâneo.

E, antes de tudo, investigativa com a exclusão do verbalismo vocal pela prevalência do gestual quase  teatro/dança, numa lembrança mimética tanto do cinema expressionista alemão (com o referencial do Tartufo, 1926, de Murnau) como do Chaplin clownesco.

Além, inclusive, da retomada/tributo à derradeira incursão de CStanislavsky, numa transposição deste clássico da comédia,  no substitutivo da palavra pela linguagem do corpo. Através da individuação teatral no acionamento psicofísico da performance, remetendo também ao ideário de treinamento do ator grotowskiano.

Neste inusitado “Tartufo” há que se destacar a artesania visual / estética da paisagem cênica ( Bel Lobo e B. Gomlevsky), extensiva ao diferencial recorte indumentário (no dúplice empenho de Maria Duartea e Márcia Pitanga) e à surpreendente nuance balinesa nos caracteres da mascaração (Mona Magalhães).

Também, num outro enfoque aproximativo da versão fílmica de Murnau, através de um desenho de luz entre muitas sombras (Elisa Tandeta), como especular marca das obscuras intencionalidades de Tartufo, é transubstancial a exploração do dimensionamento psicológico e dos contornos masculinos do papel por uma atriz (Yasmin Gomlevsky).

Sintonizada com as interpretações de um convicto elenco complementar (Gustavo Damasceno, Thiago Guerrante, Ricardo Lopes, Patrícia Callai, Nuaj Del Fiol, Felipe de Barros e Gustavo Luz). Identificando-se todos em cúmplice tarimba no ato de assumir uma linha cênica com primado absoluto do sensorial, em espontânea mas exigente metaforização da palavra pela corporeidade.

Preenchendo o vazio das sonoridades vocais, os graves acordes da partitura sinfônica do croata Borut Krzisnik ampliam o clima de pesadelo e delírio das ambiguidades morais e comportamentais na insensatez do personagem protagonista.

Enquanto alterativas pausas de silêncio, como a ecoar recursos estilísticos de hábito na contemporaneidade da criação coreográfica e musical, ajudam a sustentar o barroquismo do gestual e o gótico das faces e dos olhares em espetáculo revelador, que chega na hora certa para tempos de incerteza...
                                     
                                              Wagner Corrêa de Araújo


UM TARTUFO está em cartaz no Teatro Poeirinha/Botafogo, de quarta a sábado, às 21h; domingo, às 19h. 110 minutos. Até 24 de outubro.

BALLET STAGIUM - FIGURAS E VOZES : LÚDICA IRREVERÊNCIA COREOGRÁFICA

FOTOS/ARNALDO J. G. TORRES

Uma guerra contra todas as guerras – o axioma do  Dadaísmo ecoou desde sua instauração pelo Cabaret Voltaire, na Zurich de 1916. Com seu substrato nonsense  a partir da própria nominação Dadá - inspirada no balbuciar vocal de um bebê ao brincar com um cavalinho de pau - seu ideário artístico era o de subverter a ordem estabelecida.  

Pelas vias do absurdo e da demolição de quaisquer regras sociais ou princípios estéticos, a desconstrução feroz ia da prevalência da plasticidade visual à poesia, do teatro à música. E, no seu ato de anarquizar, incluindo a experimentação coreográfica instauradora de viscerais fisicalidades. Abrindo, enfim, com esta integralização artística, as comportas para a sequencialidade do movimento surrealista.

Ao optar por uma releitura coreográfica de substrato dadaísta, os diretores/criadores do Ballet Stagium (Décio Otero e Marika Gidali) alcançam mais um lance mallarmaico de dados. Pela apropriação ideológica da invenção Dadá no destruir para construir, através do referencial irreverente da proposta estilística de Figuras e Vozes.

Mas sem deixar, é claro, de armar o olhar na contemporaneidade, trilha fiel destes criadores sempre inseridos na tradição transmutada em renovação. Marca registrada e compromisso de uma companhia de dança antenada na brasilidade e na sua identidade de politização, presencial desde a origem (1971) em anos obscuros de ditadura militar.



Nesta obra original de 2014, seguida de  inúmeras turnês,  em oportuno tributo ao centenário do Movimento Dadaísta, há outra vez, o conluio da pesquisa gestual aliada à expressão cênica. Sabendo valorar a linguagem da dança contemporânea com rigorosas fundamentações neoclássicas.

Aqui, seus 15 bailarinos se entregam a um enérgico jogo de teatro coreográfico, na confluência da investigação do movimento aliado ao espírito atlético e à concepção cenográfica. Em incisivas reproduções performáticas de Fabio Villard com signos emblemáticos, como os “readymade” de Marcel Duchamp (a roda de bicicleta, o urinol e o vaso sanitário). 

Além da indumentária (Marcio Tadeu) em predominante tonalidade vermelho sanguíneo, sob potencial realce de luzes vazadas (Edgard Duprat). Extensivo a máscaras lembrando o imaginário de violência, tortura e terrorismo do dadaísta Marcel Janco.

Sob apurado recorte musical (Décio Otero) indo dos dadaístas Germaine Albert-Birot e Hugo Ball, este com seus poemas sonoros, aos acordes vanguardistas de Wim Mertens e Meredith Monk, sem deixar de incluir as interferências pátrias de Tetê Spindola e Marlui Miranda.

O irracional e o delírio na progressão dramática e coreográfica, sintonizados com a problemática de nossa época, trazem a esta representação do Ballet Stagium a retomada do seu habitual elemento de espontânea e provocadora pulsão estética.

Que, a partir do lúdico junto à competência artesanal, nunca deixa de refletir, além da solidez como espetáculo, seu imanente contraponto  critico.

                                     Wagner Corrêa de Araújo


BALLET STAGIUM – Figuras e Vozes – está em cartaz no Teatro da Caixa Nelson Rodrigues, de sexta a domingo, às 19h. 60 minutos. Até 14 de outubro

URBANA : TEATRO FÍSICO, COM VERDADE SOCIAL EM COMPASSO CIRCENSE


FOTOS/RENATO MANGOLIN

Uma representação mimética da realidade da grande metrópole com seus conflitos e sua agressividade comportamental cotidiana, capaz de transmutar o lúdico da convivência comunitária em guerra diária, da qual sai vencedora, sempre, a marginalidade que conduz ao crime.

Onde o aforismo literário roseano - “viver é muito perigoso” – torna-se uma prevalente lição de sobrevivência diante de um ameaçador status às mais coloquiais posturas dia-a-dia. Turbando a aparente tranquilidade do estar só, falando ao celular ou até acompanhado, não importa, num ponto de ônibus ou em qualquer esquina, e um assalto súbito ter saldo de violência terminal.

Ou ser agredido moralmente pela proibitiva miserabilidade dos muitos habitantes ao relento, entre traficantes, drogados, famintos e aleijados, adultos ou menores, todos suprindo-se, em suas prementes carências, pelo escape de seus males com o atirar-se ao roubo.

Diante deste quadro de desalento e dor, Glaucy Fragoso, no tríplice oficio de atriz, dramaturga e diretora, faz de Urbana um singular espetáculo de reflexão sobre as adversidades da condição humana no contexto citadino, entre o pânico e a poesia, do riso à melancolia.

Com sua vasta experiência nas incursões de atriz expertise em bufonaria, no circo e na rua, Glaucy Fragoso promove uma auto reflexão crítica sobre as personagens retiradas dos logradouros públicos, em intimista conexão com a desordem social dos espaços abertos da urbanidade.

No estabelecer com elas um jogo teatral, entre a representação e a veracidade, tornando-as similares àquelas as quais, nós os habitantes metropolitanos, estamos acostumados a conviver, por bem ou por mal.

Num ato de identificação viva com aqueles tipos que ora odiamos por nos legarem o mal, ora num quase perdoar de suas faltas, pela patética percepção de serem inescapáveis vítimas das mazelas da sociedade.

E que são, aqui, vistas com uma nuance de comiseração pelo riso de irônica piedade, assumido na envolvência de gestual acrobático/circense e de mascaração burlesca, triste ou divertida, mas sempre questionadora, em incisiva performance.

Fruto de longa jornada em cias. tanto de teatro popular com o substrato dos picadeiros e lonas, como das próprias  vias urbanas, estas personificações estruturam-se à base de minimalistas elementos cênicos, da indumentária básica (dividida na dupla concepção da atriz protagonista com Florência Santangelo) a incidentalizados acordes sonoros (André Ramos).

Nem sempre de comprovada eficácia no não cenário e no vazado desenho de luz (Guiga Ensá), na incompletude substitutiva de nos fazer evocar, como um ideário teatral de assumida espontaneidade, a natural ambiência dos espaços abertos da grande cidade.

Com inventivas saídas e alguns percalços numa reiterativa progressão dramática, sujeita a ocasionais quedas na superficialidade, apresentando soluções por vezes mais adequadas à autenticidade do teatro de rua que ao palco italiano. 

Como a grande falta que faz a proximidade cara a cara intérprete/espectador na exteriorização ao ar livre, implícita às possibilidades mais incisivas de sua proposta conceitual.

Mas, enfim, Urbana é espetáculo que, mesmo entre muros, não deixando perder a sua reflexão ideológica, alcança a valoração do que merece ser conferido por seu teor investigativo.  

                                             Wagner Corrêa de Araújo


URBANA está em cartaz na Fundição Progresso(Espaço Armazém), Lapa/RJ, sábado e domingo, às 19h30m. 65 minutos. Até 07 de outubro.                                           

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