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CINE MONSTRO. Enrique Diaz. Foto/Camilla Maia. |
Duas montagens premiadas mostram uma inusitada abordagem de temas polêmicos, misturando delírios mentais com
terror cinematográfico - Cine Monstro - e escatologia e morte com mordaz
ironia - Adubo
ou a Sutil Arte de Escoar Pelo Ralo.
A primeira peça é de autoria do conceituado dramaturgo e dublê
de cineasta, o canadense Daniel Maclvor,
já conhecido por aqui com as aplaudidas versões de In On It e A Primeira Vista. Cine
Monstro tem sua narrativa dramatúrgica calcada nas alucinações mentais
quase psicanalíticas de um personagem que se desdobra em treze outros, com
histórias que abordam desde os mais cotidianos atos às insanas viagens pelos
espaços siderais da mente.
O texto, de extensa progressão dramática sequencial, com sua reiterativa
retomada de frases e ideias já exploradas, não deixa escapar seu sotaque
monótono. Que só é interrompido pela provocação do espectador, ora através do blackout total por alguns instantes ora
pelos bruscos clarões dos efeitos luminares.
Com rica projeção videográfica, a montagem tem seu referencial
no terror cinematográfico através de um intrigante crime filial, funcionando em
terceira dimensão quando o brilho maior fica com o luminoso presencial do ator
Enrique Diaz, aliada à sua inventiva concepção e comando do espetáculo.
Quanto a Adubo ou a
Sutil Arte de Escoar pelo Ralo, é uma criação coletiva do teatro
brasiliense e que resiste em cartaz há uma década em inúmeras turnês,
capitaneada pelo talentoso ator Juliano Cazarré e pela direção acertada de Hugo
Rodas.
Quatro personagens em torno de uma mesa carregada de copos e
garrafas e um solo recoberto de restos de cigarros, provocam uma reflexão sobre
a finitude da trajetória humana a partir de dois vícios que tornam mais próxima
a chegada da "indesejada das gentes”,
com seu ríspido recado de que não vivemos senão para morrer.
A desafiante e inóspita trama tragicômica é aqui desenvolvida
com nuances que misturam desde a escatológica descrição de moscas sobre os
cadáveres até uma bem humorada passagem, em ritmo de rap, sobre a igualdade social dos restos humanos escoados pelos
ralos.
A envolvente presença cênica do elenco é acentuada com sua
maquiagem facial escura, aproximando aqueles seres das representações plásticas
do medo e do espanto, das iluminuras medievais à fase negra de Goya, chegando a um sotaque de expressionismo alemão com a morte jogando cartas em citação fílmica de Bergman, no Sétimo Selo.
Um tema tão mórbido como este cria uma expectativa estranha
na plateia, superada, a seguir, pela descoberta reveladora da fórmula mágica
para o espetáculo. Já que a morte, aqui, é a letra Z na simbologia da
terminalidade humana, o quarteto de intérpretes soube transcender, em alto
astral, o susto provocado pelo lado escuro do enredo, não deixando nunca, mesmo
neste cruel embate dramático, o riso perder
das lágrimas.
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ADUBO OU A SUTIL ARTE DE ESCOAR PELO RALO. Foto/Diego Bresani. |
Um novo dramaturgo surge na cena carioca, desta vez é o
jornalista gaúcho de Novo Hamburgo Joseph Meyer com O Comediante. Narrativa, entre o riso e o drama, sobre os embates
de um ator que vive no ostracismo mas que se refugia num mundo ilusório,
acreditando ainda ser dono absoluto dos aplausos de um ex-campeão entre luzes
da ribalta.
A peça, interrompida pela morte súbita de seu diretor José
Wilker, manteve seu nome nos créditos ao lado de Anderson Cunha que, de
assistente, passou a ocupar o seu lugar, preocupando-se em manter as linhas
mestras da sua proposta cênica original.
Ainda que revele um certo desequilíbrio narrativo com a
transmutação do comando diretorial. A partir do roteiro dramatúrgico que
trazia, em sua fórmula, nuances de tragicomédia entre o humor, mistério e
suspense, com a proposital postura cênica no entremeio do melodrama
cinematográfico e teatral da década de cinquenta.
A rica cenografia, acentuada pelos elegantes figurinos e envolvente
iluminação, traz elementos decorativos do clássico ao retrô, não faltando candelabros, espelhos e até um piano de meia
cauda, destacando-se, ao fundo, a transparência de um acolhedor jardim.
Sobrepondo-se a tudo uma elegante escada tendo nas paredes
laterais retratos emoldurados de divas cinematográficas, de Garbo e Dietrich a
Marilyn, por onde o protagonista (Ary Fontoura) faz uma emblemática entrada em cena, inspirada na de Gloria Swanson do Crepúsculo
dos Deuses, de Billy Wilder.
Mas estas citações remetem também ao cinema brasileiro do pós-guerra,
desde as salas familiares nobres dos melodramas típicos como A Sombra da Outra à ambientação feudal de chanchadas clássicas como Aí Vem o Barão e A Grande Vedete,
todos da lavra de Watson Macedo.
Não faltam aí a hierática governanta (Angela Rebello) e o
visionário motorista transformado em empresário (Gustavo Arthiddoro), ambos
envolvidos na inescrupulosa ideia de encomendar uma biografia do esquecido ator
a uma jovem jornalista (Carolina Loback). Com falseada mistificação de sua
decadente carreira e mantendo o diabólico status de embuste sobre a lucidez e
loucura do decadente proprietário da mansão.
Em mais convicta performance dos atributos de seu personagem
protagonista, através de Ary Fontoura, demonstrando,
mais uma vez, seu virtuosístico exercício da profissão de ator e até de intérprete
musical, em momento melancólico, sob os acordes nostálgicos de Fascination.
Completando-se tudo com o pensar cinéfilo e o toque estético de José Wilker, a
partir das próprias citações textuais do dramaturgo de passagens fílmicas
clássicas entre Victor Fleming, Hitchcock e Billy Wilder, que imprime postumamente ao espetáculo um tributo do
teatro à Sétima Arte.
Wagner
Corrêa de Araújo
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O COMEDIANTE. Foto/Léo Aversa. Estes três espetáculos estiveram em cena nos palcos cariocas entre os meses de maio e junho de 2014. |
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