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SALOMÉ. Agosto de 2014. Foto/Leonardo Pergaminho |
Original de 1892, a peça Salomé,
de Oscar Wilde, com base nos relatos
bíblicos de Mateus e Marcos, inspirou por sua vez o libretista Hedwig Lachmann para a ópera sob mesma titularidade, em obra original de
1905 por Richard Strauss.
O ambiente de crueldade, lascívia e luxuriosidade trazidos
pela obra do escritor irlandês polemizaram sua almejada estreia com Sarah Bernhardt, onde a enteada de
Herodes é um personagem dividido entre a sensualidade e a pureza :
“ A sua luxúria é o
abismo, a sua perversidade um oceano... mas uma joia resplandece como uma
estrela entre os seus seios".
Esta definição do próprio Wilde
foi extrapolada na versão operística. No cromatismo denso e convulsionado da
partitura de Richard Strauss e no enredo de labiríntica aproximação das teses
freudianas do subconsciente.
A ópera, que escandalizou em suas primeiras apresentações,
acabou se impondo pela força que exige de seus intérpretes, não só como
representação teatral mas, ainda, para o alcance exato de seu timbre de sensual
musicalidade.
Na versão cênica de André Heller, com acertos na bela
iluminação (Fábio Retti) de tons prateados no piso e uma luminosidade sombria por trás das
cortinas/véus, que acentuam o ar de exótica lascividade de uma noite de verão,
a limitação fica com certo desequilíbrio dos figurinos (Marcelo Marques) e a insistente e incomoda dança
das cadeiras no proscênio.
Mas por outro lado, os cantores/atores tem boa movimentação
cênica que supre as exigências do denso clima da conturbada trama, com destaque
para as nuances vocais alcançadas pelo tenor Paul McNamara (Herodes), como pela reveladora
mezzo-soprano Carolina Faria (Herodiade).
Os acordes de suave gravidade do barítono Lício Bruno (Jochanaan) fazem o contraponto perfeito
aos agitados timbres, de envolvente alcance vocal da soprano Eliane Coelho (Salomé) que,
em sua extraordinária performance de expressivas variações emocionais, remeteu
a memoráveis noites, já tão distantes de nossas atuais temporadas.
A brilhante técnica orquestral imprimida pelo maestro Silvio
Viegas, enfim, dignificou esta homenagem do Teatro Municipal aos 150 anos de nascimento
de Richard Strauss.
Que teve, ainda, um desempenho invulgar na longa ária final
da protagonista que, em suas referencias tonais obsessivas lembrou a morte de
amor wagneriana, mas num formato que a crítica dos anos freudianos ousou chamar
de “Liebestod Psicopático”:
“Tens nos lábios um
gosto amargo. Será o de sangue? Ou é o amor que possui um gosto amargo?”.
A sexualidade faz parte do universo coreográfico desde a sua
sistematização acadêmica. O que não quer mostrar o balé clássico, com seus
fantasiosos enredos, senão a relação sentimental e uma insinuada atração sexual
entre um homem e uma mulher?.
Esta forma estética de sublimação, no alvorecer do século XX,
fez as plateias reagirem furiosas com as posturas de ruptura do fauno de Nijinsky liberando seus desejos eróticos
em cena ou o estado de excitação orgiástica causado pelo sacrífico de uma
virgem na Sacre du Printemps.
Como, alguns anos depois, gerou estranheza a coreografia de Bronislava Nijinska para Les Biches onde as pequenas
corças (biches) ou meninas adolescentes são assediadas por jovens atletas
narcisistas.
Evoluindo nas décadas seguintes, com Martha Graham trazendo temáticas de liberação das tensões sexuais
nas suas criações coreográficas. Para atingir, em nosso tempo, a conceituação
de uma dança como teatro dos sentidos, sem limites físicos e fronteiras morais.
Estas reflexões são a propósito da Cia de Dança Deborah Colker que, em termos nacionais, é o grupo que
foi mais longe na total liberação da rigidez acadêmica dos torsos, alcançando
um estilo de movimentação física, sensual e tão excitante, que a fez próxima
dos riscos das competições atléticas. Com esta marca ganhou status e conquistou
multidões em suas inúmeras turnês aqui e além mar.
A partir de 2011, a Cia
passou a investir na concepção coreográfica narrativa com referencial neoclássico, começando com Tatyana (a partir do Eugene Oneguin, de Puchkin) e, agora, Belle, mais livremente inspirada no
romance de Joseph Kessel e no filme
de Buñuel, ambos com o título de Belle de Jour.
Experiência que dividiu parte do público e da crítica e que não
logrou atingir o acertado lance estético de criações anteriores com sua aposta no
gestual físico/acrobático. Marcante em outras obras que, mesmo sob a habitual mecanicidade com a aparente
robotização dos bailarinos, traziam implícita uma vigorosa carga emocional.
Em Belle, a
indiscutível qualidade da produção com figurinos (Samuel Cirnansck) exuberantes, a envolvente
iluminação (Jorginho de Carvalho) e o score musical preciso
de Berna Ceppas, além da energizada técnica dos bailarinos, não conseguem esconder uma sensação de espera por algo
mais.
A substituição do abstrato pela narrativa sequencial, acaba
incorrendo aqui na previsibilidade, especialmente no clima monótono do primeiro
ato com sua limitada utilização de sapatilhas de ponta .
Quebrada apenas com a
sugestiva presença de uma cortina que cria envolventes e erotizadas formas
escultóricas.
Enquanto, no segundo ato, a utilização do corpo como
instrumento de prazer num bordel tem melhor alcance da identidade coreográfica
da Cia, no dinamismo mais impactante
de seu erotizado gestual.
E aí, mesmo sendo Belle
um balé de enredo ficcional, é retomado o salto inventivo de Debora Colker na
dança contemporânea brasileira, na sua superlativa conjugação do físico com o
emocional, apresentando um expressivo retrato coreográfico dos desejos humanos.
Wagner Corrêa de Araújo
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BELLE. Junho 2014. Foto/ Flávio Colker. |
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