RELAÇÕES APARENTES. Direção Ary Coslov. |
O público brasileiro, especialmente o carioca, está vivendo
uma lua de mel com um teatro leve e descompromissado, diversão pela diversão,
ora através dos musicais ora do humor quase próximo do escrachado e que nunca
conduz a qualquer reflexão.
Diante deste quadro e para estas plateias, o requintado e
quase recatado humor inglês, soa démodé,
arrastado e pouco apreensível, em seus clássicos jogos dramatúrgicos e suas
sutis ironias verbais, dentro da mais tradicional comédia de costumes .
Mestre neste humor refinado, o premiado autor inglês Alan Ayckbourn é tão popular em seu país
que, a par de seus títulos e honrarias oficiais, chega ainda, com o apoio
crítico e aplauso público, a disputar sua fama com Shakespeare.
Estreada há meio século, Relações
Aparentes é considerada sua obra prima, mantendo a atualidade temática,
ainda que presa ao comportamento e à moral daqueles anos 60, características
que a sempre competente direção de Ary Coslov, desta vez, dividida com Edson
Fieschi, conserva em suas linhas cênicas de concepção e de interpretação.
Destacam-se, neste aspecto a cenografia de Marcos Flaksman e
os figurinos de Marilia Carneiro como retratos hiper-realistas de outros
tempos, sem nenhum deslize para o décor contemporâneo.
No elenco, o maior brilho fica com os personagens masculinos,
precisos na desenvoltura como Tato Gabus Mendes e nas nuances do tempo cômico
caso de Frank Borges. Isto, em parte, alcançado por Gisele Batista. E com menor
sintonia, prejudicada por instável projeção vocal, por Antônia Frering.
O tema recorrente deste teatro, que ironiza o mundo da alta
classe média londrina tratando do rompimento dos cânones familiares com a
traição entre casais, jamais se abstém da elegância e da sensibilidade em seu linguajar
literário puro, onde o ferino nunca aparece através do palavrão. Aliás, este é o
grande diferencial desta montagem que vale ser conferida.
Uma das grandes
surpresas da dramaturgia contemporânea é o inglês Mike Bartlett que, aos 33
anos, já é autor de uma obra instigante que investiga, a fundo, temas de
polêmica atualidade como o conflito de identidades sexuais em Cock - Briga de Galo e a invasão de
privacidade em Contrações.
Há mais de um século, o seu antecessor britânico Oscar Wilde, para falar do amor que não
podia então ser nomeado, apenas dissimulava, nas entrelinhas, o rumor de que
seu personagem mor Dorian Gray teria
um relacionamento ou com o lorde Henry ou com o pintor de seu retrato.
O único subterfúgio era expor este segredo íntimo como um
reflexo do alter ego de Wilde e como uma paixão estética do personagem pela atraente
imagem masculina de si mesmo refletida numa pintura. Sem que, em nenhum
momento, houvesse referência a qualquer forma de pulsão erótica.
No terceiro milênio, em que as opções amorosas começam a
ficar mais expostas socialmente, já não é necessário insinuar apenas
literariamente, como Wilde ou Marcel Proust, os desejos secretos pelo
mesmo sexo, diante de uma perspectiva mais aberta destas relações com o universo
em que estão inseridas.
Mesmo assim, Bartlett em sua peça Cock, de 2009, não deixa de fazer referência ao mundo ainda fechado
destes relacionamentos circunscritos, na sua proposta cênica, a um ringue cenográfico
minimalista onde os atores-lutadores e os espectadores/torcedores interagem,
como nas lutas esportivas ou nas pequenas brigas de galo, ambas marcadas pela
ferocidade e pelo sangue.
Aqui, em dimensão estética de teatro de arena, como se fora a
disputa em torno de um ritual de despojamento da preconceituosa privacidade
íntima e passional de um casal gay de namorados.
Na concepção dramatúrgica original, os personagens são
nomeados apenas por letras, excetuando-se o jovem John (Felipe Lima) consorte há sete anos de M (Márcio Machado), além de W
(Débora Lamm) a mulher que leva uma
estável relação ao conflito, intermediado por F (Hélio Ribeiro), o pai de M.
No elenco, equilibrado e em coesa representação, a indecisa aceitação de si mesmo na dupla
identidade sensual aparece, com original substrato narrativo, no tom vocal, quase
recitativo, assumido por Felipe Lima. Destaque-se ainda o nervoso gestual
interpretativo de Márcio Machado que o aproxima, com autenticidade, do animal
ferido na luta. Enquanto Débora Lamm, mais uma vez, mostra sua profunda
expressividade como atriz e Hélio Ribeiro, em breve passagem, revela mérito na
sua tentativa de conciliar o inconciliável.
A segura direção de Inez Viana alcança, com as marcações
cênicas da claustrofóbica luz baixa e a substituição do score musical por
sinais de ringue que fragmentam emocionalmente a cena em rounds, o acertado
comando deste pequeno grande mundo em permanente estado de defesa.
Numa sociedade em que cada vez mais as relações de domínio e
de poder afetam a prevalência da individualidade e colocam em risco os caminhos
da liberdade, a peça Contrações, também do
inglês Mike Bartlett, mostra como os códigos de ética corporativos são capazes de
violar, em proveito do pretenso bem estar coletivo do ambiente de emprego, a própria
dignidade do ser humano.
A funcionária Emma (Débora Falabella), recém contratada de
uma micro empresa, na necessidade de manter o seu frágil vinculo empregatício,
deixa se envolver pelo estúpido jogo de servidão imposto pela discricionária
gerente (Yara de Novaes), a partir de uma cláusula contratual proibitiva de
relações de teor sentimental, amoroso ou sexual, entre os que compartilham o
trabalho.
O roteiro dramatúrgico acontece num ambiente minimalista onde,
além da sala gerencial, visualiza-se, através de um vidro, a equipe técnica da
peça, lembrando profissionais de ilha em emissora de TV, numa quase simbologia
de uma vida sendo mecanicamente editada em cortes secos.
Com clima de comédia dramática, a manipulação progressiva de
comando sobre o subordinado vai da ironia ferina à agressividade verbal, num
processo de despojamento da personalidade e progressiva marginalização
físico/mental, em proveito do interesse patronal.
Neste confronto, em compasso de feroz embate, aparece a
excepcional força interpretativa de duas atrizes em que, de um lado, Débora
Falabella constrói um expressivo gestual físico e Yara de Novaes encontra sua
identidade na máscara facial, estigmatizada pelos medíocres clichês corporativos.
As interferências sonoras entre o rufar heavy da bateria e acordes de Mozart,
a indução do frio congelante com neblina e casacos de pele, apertam, encolhem,
contraem atores e público, num ritual de medo do próprio medo diante da
violação recíproca da privacidade interior, uma das mais terríveis doenças do
espírito humano .
Tudo isto obrigatoriamente imperdível sob a sedutora marca criativa
da diretora Grace Passô, capaz de fazer um texto teatral chegar sempre àquele que
deve ser o seu verdadeiro lugar.
Wagner Corrêa de Araujo
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