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O CANTO DO CISNE. Com Edney Giovenazzi e Pietro Mario. Foto/Guga Melgar. |
Quando Anton Tchekhov escreveu uma de suas primeiras peças – O Canto do Cisne, com o subtítulo de Um Estudo Dramático em um Ato, ele estava aproximando a dramaturgia ao conceito filosófico do escritor Henry James sobre o romance, como um olhar da trajetória existencial pelo buraco da fechadura.
Ao mesmo tempo ele antecipava, nas últimas décadas do século
XIX, um tema mor na obra dos pilares do teatro do absurdo – Ionesco e Becket, a destruidora força do tempo na decadência da velhice, relegando
a condição humana ao abandono e ao esquecimento. Aqui representada pelo desenlace de um ator no vazio de um palco sem plateia.
Inconscientemente talvez, até pela não compreensão e pelo
fracasso da peça na época, o escritor e dramaturgo russo em seu texto prenunciava paradigmas da metalinguagem teatral. Um tragicômico ensaio lírico sobre um ator
fazendo o personagem de um ator na prestação de contas de sua carreira, teatro
dentro do teatro em clima crepuscular.
Em incisivo desafio dramatúrgico para grandes atores executarem
seu testemunho do ato de criadores, fazendo desta profissão o ato de uma vida
inteira dada de presente ao público, com suas alegrias, sua melancolia, seus
sonhos e desejos mais intimistas.
E numa significativa escolha do ator Edney Giovenazzi para
celebrar seus sessenta anos de carreira, relacionando este momento com duas de
suas brilhantes atuações que remetem ao Tchekhov
de O Jardim das Cerejeiras e ao Ionesco de A Agonia do Rei.
A direção de José Henrique, também responsável pela acertada
baixa iluminação, conseguiu captar, com dignidade, o sombrio mundo de um ator
num camarim, pós outra representação de sua sofrida sobrevivência em cena, num
decadente teatro provinciano e sem nenhum público .
Como coadjuvante, a presença de outro veterano dos palcos - Pietro
Mario em expressiva performance no papel do ponto, na paralela simbologia dos
bastidores da representação. Além da representação do protagonista, o velho ator Vassíli (Edney
Giovenazzi) que tem seu mais alto alcance numa atuação propositalmente cansada
onde a exaustão é o próprio apanágio do personagem.
O que faz lembrar um depoimento de Maria Callas diante das críticas negativas por seu último ato de La Traviata, em que ela afirma, convicta,
que o aspecto ofegante e pesado de sua interpretação foi propositalmente
assumido, como uma metáfora da derradeira fadiga da dama das camélias diante das cruéis vicissitudes de seu destino.
Original de 1888, a peça A Dama do Mar é um drama interiorizado, com um texto realista mas com sentido misterioso e quase místico, que representa, na obra de Henrik Ibsen, uma incursão ao gênero simbolista .
Ao lado de Casa de
Bonecas e de Hedda Gabler, mais uma vez, são os personagens femininos que anseiam pela perspectiva de
libertação do cotidiano sufocante, como escape do mero papel de mães e esposas
insatisfeitas, no caso Ellida (Tania
Pires), a dama do mar, ao lado de
suas duas filhas no imutável desencanto do meio provinciano.
Convivendo com Wangel (Zeca
Cenovicz) um marido envelhecido, um médico quase simplório mais próximo do prazer da
bebida que de um verdadeiro amante, ela sonha o tempo inteiro com um atraente homem do
mar, um marinheiro que conhecera anos antes, o Estrangeiro (João Vitti) que poderia suprir o imobilismo e quebrar
as grades de seu casamento infeliz.
Ambientada numa região norueguesa onde o mar marca fortemente
o limitado dia a dia destas vidas melancólicas da Dama e do Estrangeiro sua progressão
dramática chega a enunciar sentimentos amorosos líquidos, nos encontros
metafóricos destes seres quase anfíbios.
A peça, na visão de Maurício Arruda Mendonça sob criativo
comando de Paulo de Moraes, acentua perceptivelmente este aspecto. E ainda remete a
uma concepção anterior de Bob Wilson para o mesmo texto onde ele radicalizava
fazendo de Ellida uma sereia e do Estrangeiro um ser das profundezas
marítimas.
Na minimalista cenografia, o destaque absoluto são os
aquários - um menor com peixes reais, avermelhados como uma simbologia da
libertação que estas águas podem trazer, ao lado de um de grandes proporções
onde os idealizados amantes mergulham.
Numa evocação simbológica da trama dramatúrgica, provocando
belíssimo efeito estético da fusão de corpos, em gestual erótico e de
plasticidade escultórica. Emoldurada com um adequado fio azulado da iluminação
(Maneco Quinderé), figurinos atemporais e sonoridades entre o eletro/pop e acordes new age.
Com presença equilibrada e cumplicidade do elenco coadjuvante
(Renata Guida, Andressa Lameu, Leonardo Hinckel, Joelson Medeiros), a discreta
atuação inicial da protagonista chega ao seu melhor momento no epílogo onde, então, se
estabelece um envolvente embate entre a performance mais sedutora do Estrangeiro e a contida mas correta fala
de Wangel, ao lado de uma mais
aprofundada construção da personagem Ellida.
Enfim, um espetáculo que vale ser conferido ainda que seja
para sentir ali o arquétipo voo metafísico de Ibsen na afirmação da
individualidade, presente sempre na epígrafe de suas peças:“Poesia é saber julgar
a si próprio”.
"O que aconteceria se, em vez de apenas
construir nossa vida, nós nos entregássemos à loucura ou à sabedoria de
dança-la?”- bela
reflexão do pensador francês Roger
Garaudy, que poderia referenciar a envolvente montagem da peça de Tennessee Williams, Fala Comigo Como a Chuva e Me Deixa Ouvir.
Em inventiva concepção do diretor Ivan Sugahara, a peça
itinerante percorre os ambientes de uma bela casa carioca das primeiras décadas
do século XX, em sessões vesperais de finais de semana para aproveitar os
efeitos crepusculares, ora ao ar livre, ora através das janelas e portas, numa
atmosfera lírica que remete, através desta iluminação natural, às telas do
pintor realista americano Edward Hopper.
Com este contexto estético é retomado um dos temas mais caros
ao dramaturgo americano, o conflito permanente da condição humana entre o sonho
e o abismo. Refletido numa concepção cênica de solilóquios verbais, vozes em
off, raros diálogos ou até de pausas e silêncios.
Um retrato dramatúrgico intimista dos momentos efêmeros de
dois amantes, onde o amor já é um sentimento em demolição, diante das felizes
lembranças do passado e as incertezas e temores do futuro.
Onde a cenografia minimalista (André Sanches) e os figurinos
romantizados (Tarsila Takahashi), tornam-se quase uma pintura metafísica
acentuando a interiorização deste casal imerso na incomunicabilidade, almas
prisioneiras e torturadas, como todos os personagens de Tennessee Williams. Além da funcional trilha sonora misturando
clássicos da canção norte americana a passagens de Philipp Glass.
Valorizada ainda por um olhar cinematográfico compartilhado
pelo público com suas tomadas aéreas externas, planos médios e gerais e até
grandes closes insinuados na
expressão facial da cativante performance dos protagonistas (Angela Câmara e
Saulo Rodrigues).
E, ainda, numa poética direção de movimentos (Duda Maia), ora
marcada pelos rewinds como um processo de edição de takes existenciais, em
alegorias nostálgicas de um amor finalizado.
Ou completada nas passagens de gestual coreográfico, dança/teatro de memórias e lembranças do apego emocional de dois seres em conflito,
onde as palavras já não bastam para vencer a estranheza da separação.
Enfim, um espetáculo ritualístico, na confluência de suas
diversas linguagens artísticas, e uma surpresa criadora imperdível.
Wagner Corrêa de Araújo
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FALA COMIGO COMO A CHUVA E ME DEIXA OUVIR. Foto / Dalton Valério. Estas três peças estiveram em cartaz nos palcos do Rio e de SP, entre maio e julho de 2014. |
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