“ Nada menos de duas
almas. Cada criatura traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora,
outra que olha de fora para dentro...”(Machado de Assis - O Espelho).
O ator Ney Piacentini já incursionara no legado de Machado de
Assis em Visões Siamesas, espetáculo de
2004, idealizado como um dos seus conceituais experimentos na Companhia do Latão.
E, agora, ele retoma o escritor carioca em monólogo que promove
um elo, condutor e secular, do conto
machadiano com outro de Guimarães Rosa, em similar titularidade. Quando, sobretudo,
o espetáculo Espelhos pluraliza a
metafísica identificação temática entre estas duas obras.
Nesta contextualização dialetal de dois personagens diante de
seu reflexo especular, no entremeio de diferentes épocas, para questionamento
do ser e do não ser da condição humana e do estar diante da sociedade.
Com imanente paralelismo da alma subjetiva com a alma nacional
no olhar armado de dois escritores e na simbológica transmutação da sua linguagem
literária, em provocante e investigativa gramática cênica conduzida por Vivien
Buckup.
Aqui adaptada à representação solo de Ney Piacentini
dividindo-se, em moto-contínuo, na pulsão
do saber imprimir fisicalidade e vivência à palavra literária. Tornada presencial
na voz e na gestualidade de Jacobina,
o protagonista masculino do relato ficcional machadiano.
E, avançando, nesta proposta de ressignificar um precioso inventário fabular, em eletrizadas ressonâncias da corporificação de um narrador rosiano
sem identidade nominal, no segundo módulo da performance.
Pela transcrição linear e fidedigna às textualidades
originais torna-se perceptível a prevalência do sotaque literário, tanto na
aproximação da pureza estética de Machado como na exponencial contemporaneidade
estilística de Rosa.
De ocular predominância no primeiro conto, com sua iluminação
climática e paisagem cenográfica com elementos de época (em dúplice empenho por
Marisa Bentivegna), extensível ao recatado figurino(Fabio Namatame)sugestionando
um cavalheiro carioca oitocentista.
Onde o fluxo dramático, em concepção atrelada apenas a uma quase
leitura cênica, é sustentado por uma energizada entrega atoral à proposta. Que
revela, subliminarmente, sua práxis épico-dialética ao imprimir um assumido efeito
de distanciamento palco>plateia, ator>espectador.
Propiciado, principalmente, por seu aporte psico/filosófico
e pelo contraponto critico na visão político/social do homem brasileiro. Além
de maior exigência na decifração do conceito
teatral de textos ficcionais intimistas, sem nenhuma concessão ao coloquialismo no fraseado e à facilitação vocabular.
Diante do risco da exposição, em sua intrínseca integralidade,
desta dúplice textualidade de construção absolutamente literária, a partir de
um discurso de recorrência metafisica, há que se considerar as diferenciais
nuances na sua passagem livro/palco.
Assim, na tradução à teatralidade destes dois Espelhos de material livresco, enquanto
o primeiro reflete maior sintonia especular com o élan machadiano, é o segundo que
desvela um novo e mais arrojado olhar na transcrição do original rosiano. Ainda
que, por vezes, quase estabeleça um acirrado duelo de linguagens.
Como se estivesse a potencializar o jogo inventivo e alterativo
dos significados deste emblemático legado de sua escritura, aqui as palavras
dançam em cada gesto atoral de desconstrução do eu diante do seu reflexo especular.
Mas tudo, enfim, revelando uma conexão entre o poder de
interiorização e a envolvência sensorial no processo de criação de Ney Piacentini. Tornando, enfim, obrigatória a leitura simultânea do seu revelador
testemunho do oficio de 20 anos na
Companhia do Latão no recém publicado O
Ator Dialético.
Wagner Corrêa de Araújo
Wagner Corrêa de Araújo
ESPELHOS está em cartaz no Teatro Poeirinha, de quinta a
sábado, às 21h; domingo, às 19h. 60 minutos. Até 24 de fevereiro.
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