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FOTOS/CRISTINA GRANATO |
A dramaturgia argentina contemporânea, com Mordidas (Tarascones), do conceituado autor, ficcionista e compositor Gonzalo
Demaria, traz outro exemplar de sua mais
recente safra aos palcos brasileiros. Desta vez com um inusitado sotaque de comédia absurda, tanto pela mordacidade em sua abordagem temática
como por seu ironizado revestimento linguístico em versos rimados.
Original de 2016, Prêmio ACE(Asociácion de Cronistas del Espectáculo) como melhor texto , em menos de dois anos tornou-se um fenômeno de público e de crítica. E que chega entre nós, em versão de Miguel Falabella, com um olhar diferenciado da montagem platina pela visão concepcional do diretor Victor Garcia Peralta.
Na sua teatralidade cômico/burguesa de sintaxe poética, Mordidas vai desnudando, na sua progressão
dramática, um humor áspero e grotesco. Inicializado no entremeio de falsas aparências
de refinamento, em alienados encontros de quatro amigas ricas que gastam suas
tardes entre carteados, vulgaridades estéticas e maus dizeres.
Até que, numa destas vesperais de chá, jogos e futilidades, caiam no estranhamento pela descoberta de um estupidificado crime doméstico cometido pela
criada de uma delas(no caso, Raquel). No
retirar friamente a vida de inocente ser feminino nominado Bola de Neve e, indo além na brutalidade, ao deflorar seu hímen com intermitente derrame
sanguíneo .
Aprisionada num dos cômodos da casa da madame Raquel (Regina
Braga), a desprezível serviçal aguarda por uma resposta jurídica a partir da falaz simulação de tribunal doméstico. Integrado, além da patroa, por suas três amigas Stela(Luciana Braga),
Martita(Zélia Duncan) e Zulma(Ana Beatriz Nogueira).
Mas é quando começa o veredito, precedido pela entrada do cortejo funéreo sala a dentro,
que se revela enfim a verdade sobre o corpore
victimis exposto numa caixa de sapatos de grife: trata-se não de uma menina
mas da cachorrinha de estimação de
Raquel.
A partir daí, cada uma delas assumindo o papel jurídico que lhe coube começa um jogo de manipulação das duplicidades faciais. Mascarado nos
súbitos depoimentos sem escrúpulos e de ímpio riso, tanto pelo nojo às classes sociais inferiorizadas como na
revelação de almas ressentidas por sua vulgaridade e vilania.
E onde as quatro atrizes, em sintonizada pulsão performática entre a
fisicalidade naturalista(Márcia Rubin) e o dimensionamento psicológico dos personagens, fazem
uso dos mecanismos grotescos/risíveis a que conduz uma particularizada narrativa
em palavra versificada. Com carga de maturidade e carisma que faz também resgatar o potencial de celebrada cantora (Zelia Duncan) com um convicto domínio dramático do palco.
No contraponto crítico de um absurdo velório canino ao
comportamental histriônico pós uso de máscara, com insólita exposição de um incomodo factual de verdades e mentiras. Contextualizadas na elegância quase kitsch
da ambiência cenográfica(Dina Salem Levy) e da refinada indumentária(Carla
Garan), sob vazamento luminar(Wagner Azevedo).
Em segura amarração desta gramática cênica assumida pela direção
de Victor Garcia Peralta, numa comédia selvagem, de verve lúdico/policialesca, fazendo rir apenas por sua absurdidade ingênua. Mas com carga de sarcástico verismo em sua denuncia comportamental de podres poderes que, na sua descompromissada dramatização de um conflito de vontades, ainda assim pode fazer reflexionar em tempos também de tantas impossibilidades...
Wagner Corrêa de Araújo
MORDIDAS está em cartaz no Teatro Fashion Mall/São Conrado/RJ, sexta e sábado, às 21h; domingo, às 19h30m. 70 minutos. Até 27 de maio.
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