O Caso. De Jacques Mougenot. Direção Fernando Philbert. Abril/ 2023. Fotos/Guga Melgar |
“O medo do tédio é o
medo da morte” já dizia Freud na abordagem de um dos pontos nevrálgicos com que se defronta a condição humana diante da perspectiva inescapável de sua
terminalidade. E ao seu ideário adicione-se o pensar de Schopenhauer, Kierkegaard, Adorno, Heidegger, não se podendo
esquecer que além da filosofia, o vazio e o nonsense da vida está claramente sinalizado
no absurdo conceitual do teatro de Beckett.
Não há como escapar de uma neurose que se tornou marca registrada
do homem contemporâneo - o sufocante tédio cotidiano que leva aos consultórios terapêuticos
por uma quase sempre inalcançável saída. E é com este tema que o dramaturgo francês
Jacques Mougenot brinca na pulsão do lúdico puro e simples, com refinado humor
e intrigante confronto mental, em sua peça O
Caso (do original, Le Cas Martin
Piche).
E que chega, em boa hora, aos palcos brasileiros. Depois de
tantas adversidades, entre a obrigatória reclusão pandêmica e as discrepâncias da
(des)governança de um pretenso mito, não é nada difícil encontrar quem passou a achar que a nossa realidade chegara a se tornar, naquela terrível mesmice, um protótipo do entediante.
É assim que se identifica aquele paciente em busca de um
acolhimento terapêutico com uma analista psiquiátrica. Mostrando que tem muito de cada um
de nós e sendo capaz de suscitar o burlesco a partir de seu incômodo tormento,
insistentemente inexplicável neste seu achar que o mundo só se explicaria mesmo
através de sua insana chatice.
Levando-o a se refugiar no divã psicanalista enquanto espera qualquer diagnóstico para a eternidade ancestral deste mal du siècle, maçante e cansativo, com seu presságio de resistente inderrogabilidade. Com um incrível senso visionário para a simbologia da peça, na versão original da estreia em 2018, o paciente/personagem era o próprio dramaturgo (Jacques Mougenot), em dúplice atuação autoral e performática.
O Caso. De Jacques Mougenot. Com Letícia Isnard e Otavio Müller. Abril/2023. Fotos Guga Melgar. |
Já, aqui, na cena teatral carioca, na plena convicção do paciente que é Otavio Müller
e da médica ser Leticia Isnard, funcionalmente
portando indumentárias cotidianas (Carol Lobato), enquanto Fernando Philbert
assume o comando concepcional do espetáculo. Em precisa artesania que se
destaca pela sintonização de sua proposta dramatúrgica, do riso crítico
à ironia mordaz, entre o paradoxo de um psicologismo onirista e o inesperado da revelação final.
Onde a caixa cênica (mais uma das acertadas invencionices de
Natália Lana), num quase suporte de instalação plástica, referencia uma sala de
consulta clínica tendo como construtivista paisagem frontal o metafórico sugestionamento
de um destes jogos de armar com peças que se encaixam umas nas outras, tudo ressaltado
sob a prevalência dos efeitos luminares
vazados de Vilmar Olos.
A trama narrativa já provocando a reação bem humorada do público com a entrada na cena do cabisbaixo
personagem masculino portador de risível comportamento psicótico. Aquele típico chato que não deixa de ser um fingidor, ao se carregar da síndrome dos tediosos com suas nuances reiterativas de tensão, em assumida
caracterização naturalista de Otávio Müller com apurada verve cômica.
Enquanto Letícia Isnard como a neuropsiquiatra preenche, por intermédio de envolvente espontaneidade, a busca da compreensão das atitudes irracionais do paciente
com técnica dosada e irradiante vocalização que alcança cada espectador, numa
interpretação terapêutica de cativante alcance coletivo.
Cabendo mais uma vez a Fernando Philbert, com sua habitual competência
na arquitetura da representação dramática, conduzir outro personagem
provocador de Mougenot. Na continuidade reveladora de seu processo dramatúrgico do
Escândalo Philippe Dussaert, sendo direcionado
novamente a uma inusitada virada do jogo teatral.
Entre a comédia e a reflexão, podendo-se conectar O Caso sobre o marasmo cotidiano à causa do tédio que nos
assola, tudo quem sabe se resumiria nas oportunas palavras de Theodor Adorno : “Se as pessoas
pudessem decidir sobre si mesmas e sobre suas vidas, se não estivessem
encerradas no sempre igual, então não se entediariam...”
Wagner Corrêa de Araújo
O Caso está em cartaz no Teatro das Artes, Shopping da Gávea, sexta às 21h; sábado, às 20h; domingo, às 19h. Até 30/04.
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