O Tempo e a Sala. De Botho Strauss. Direção/Leandro Daniel. Abril/2023. Fotos/Humberto Araújo. |
“Criar figuras para o
teatro é sempre criar um esboço e uma alusão. A minha dificuldade em criar
caracteres deve-se simplesmente ao fato de eu não ter nenhum conceito de
individuo... Não me interessa como uma figura isolada é constituída,
interessa-me aquilo que tem caráter transindividual”. Nesta reflexão
autoral está perceptivelmente inserido o contexto estético da criação dramatúrgica
do alemão Botho Strauss, classificando-o
como um dos mais lídimos representantes do chamado Realismo Fantástico no
universo cênico.
Em suas quatorze peças – algumas delas já apresentadas nos
palcos brasileiros como a memorável versão de Celso Nunes para Grande e Pequeno, 1985, com especial destaque
na performance de Renata Sorrah - há uma prevalência de enigmáticos personagens
que aparecem e desaparecem em questionadores entrelaces com os comparsas da
cena, como se coexistissem num estranho processo de afogamento e flutuação.
Esta característica marca os nove personagens de O Tempo e a Sala que chega ao Rio, depois
de uma instantânea temporada no recente Festival
de Teatro de Curitiba, reunindo
um elenco múltiplo, incluídos quatro autênticos paranaenses - Simone Spoladore,
Rodrigo Ferrarini, Maureen Miranda e Leandro Daniel, este em dúplice atuação
como ator e diretor. Completando-se a trupe com os nomes de Adriana Seiffert,
Bia Arantes, Daniel Warren, Jandir Ferrari e Rafa Sieg.
A ambientação cenográfica realista (Fernando Marés), sugestionando uma sala com portas laterais, quatro grandes janelas frontais e alguns móveis, é
dimensionada por uma estranha coluna; e dali ecoará uma metafórica fala em off (na voz de Leticia Spiller) com uma pegada de
teatro do absurdo. Havendo um reiterativo e fugaz entra e sai dos atores em indumentárias
cotidianas (Ana Avelar), sob uma luminosidade sombreada (Adriana Ortiz), no entremeio
de ocasionais intervenções sonoro/musicais (Edith de Camargo).
Já na primeira cena estabelecendo-se uma dialetação quase monologal
dos moradores Julius e Olaf sobre o paisagismo citadino visto
do alto de um segundo andar de um velho predio, insinuando a sufocante rotina
que perpassa o dia a dia dos transeuntes lá fora, ao lado de um referencial de que
teria havido um encontro temporal/espacial de conhecidos, ali entre aquelas quatro paredes,
na noite anterior.
O Tempo e a Sala. De Botho Strauss. Nove afinados atores sob a direção de Leandro Daniel. Abril/2023. Fotos/Humberto Araújo. |
Sucedendo-se, sequencialmente com toques da campainha, o
aparecimento súbito de inquietos personagens, marcados pelo estranhamento da que representaria uma espécie de papel guia nesta misteriosa e descontínua galeria de tipos
dramaturgicos peculiares - Marie Steuber. Em convicta representação de Simone Spoladore, com simbólicas falas e
sensoriais atitudes, na busca de liames com as ações dos outros parceiros deste desconcertante jogo no entorno da condição humana.
Sublimado apenas pelas tentativas desta personagem de
superar, com particularizadas lembranças de passagens existenciais, a carência afetiva
daqueles seres mergulhados no abismo de suas insatisfações e na reclusão de
seus silêncios. E não por acaso, a peça pouco após a sua estreia original, foi dirigida
por Ingmar Bergman numa sensitiva identificação
com seu universo fílmico.
No direcionar-se de tudo à artificialidade e ao nonsense das enunciações de cada um daquelas figuras, privilegiando um ensimesmar-se psicológico com sintomática
desdramatização isolacionista como se não existissem os outros. Correspondido
aqui numa segura direção concepcional de Leandro Daniel para um elenco que se
entrega, energizado, ao desafio de uma partida provocadoramente antilúdica .
No confronto de sua desintonização da literalidade dramática, entre um humor subliminar e seu sotaque de absurdo, sendo capaz de incomodar com o significado de sua insípida verdade do mais desatento ao mais alienado dos espectadores. Em clima delirante que conecta o desespero, a melancolia e o tédio na tessitura de uma assumida narrativa fragmentária, ampliada pelo niilismo burlesco de um quadro de seres náufragos, tomados pela opressão da incomunicabilidade entre eles à espera de um impossível resgate.
Sintetizado, sobremaneira, no desespero emotivo das emblemáticas palavras terminais de sua personagem condutora: “A quem eu não tive que me adaptar!... Não sobrou nada. De nenhum. Rastro algum. Foi saudável. Aquilo que eu lá segurei com força, lá eu deixei: aquilo que eu sou...”
Wagner Corrêa de Araújo
Um comentário:
Excelente crítica,parabéns!!!
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