UMA MULHER AO SOL : SENSORIAL MERGULHO NOS ABISMOS MENTAIS DE UMA ESCRITORA

Uma Mulher ao Sol. Direção concepcional/Ivan Sugahara. Março/2023. Fotos/Dalton Valério.


No último Festival de Avignon, em julho de 2022, duas cias brasileiras ali presentes abordaram os conflitos opressivos da homossexualidade reprimida (Tom na Fazenda) e os desvarios de uma mente feminina submetida às sórdidas formas de antigo tratamento manicomial (Uma Mulher ao Sol). Enquanto a primeira era dirigida por Rodrigo Portela, a partir de um texto do dramaturgo canadense Jean Marc Bouchard, a segunda tinha o comando concepcional de Ivan Sugahara, num dúplice projeto dramatúrgico com a atriz Danielle Oliveira, inspirado na obra da escritora e jornalista mineira Maura Lopes Cançado.

Com dois livros publicados sobre suas experiências confessionais das então absolutamente temíveis internações, pelas quais passou na quase integralidade de sua conturbada trajetória existencial, em aviltantes instituições e seus violentos tratamentos de distúrbios psiquiátricos. Embora tivesse integrado a brilhante geração editorial do referencial suplemento literário do Jornal do Brasil, ao lado de nomes como Reynaldo Jardim, Carlos Heitor Cony e Ferreira Gullar, seu maior legado como escritora ficou primordialmente com a obra Hospício é Deus .

De grande simbologia à época como desafiante denúncia dos radicais e humilhantes sistemas clínicos a que eram submetidos os internos, especialmente a corporeidade feminina e seu livre arbítrio, numa extensiva turbação de qualquer empoderamento do movimento libertário da mulher diante da prevalência do domínio machista. Marcada como foi por surtos delirantes desde a infância e a adolescência, incluído o pesadelo de assédios sexuais condutores a uma prematura gravidez aos 15 anos. O que a leva, no entorno de bem sucedida carreira jornalística, à sua iniciativa da busca de internações das quais jamais conseguirá escapar.

Em ideário surgido da convivência domiciliar de Ivan Sugahara com as duas atrizes Danielle Oliveira e Maria Augusta Montera durante o sufocante isolamento à causa do surto pandêmico. Numa espécie de reflexo especular comparativo da vivência privada de reclusão entre quatro paredes e o aprisionamento dos manicômios, a partir das sofridas reflexões de Maura Lopes Cançado. Na estruturação de um teatro absolutamente fisico de apelo coreográfico, sem incidências de vocalização verbal das atrizes, através de uma envolvente narração em off com passagens elucidativas da narativa original da autora de Hospício é Deus.


Uma Mulher ao Sol. Com Danielle Oliveira e Maria Augusta Montera. Março/2023. Fotos/Dalton Valério.

E onde, através da transcrição dramática como Uma Mulher Ao Sol, o fluxo dos processos da consciência mental em estado de pânico é transmutado em emblemático ritual de horrores advindos da punição à insana consciência de duas mulheres em única voz e numa mesma personagem. Com minimalista ambiência cenográfica (Cristina Novaes/Renata Pittigliani) de tempo e espaço, preenchida apenas por simbólicos elementos de sugestionamento de um hospício.

Incluído, aí, um figurino básico (Joana Lima Silva) com prevalência imagética da branquitude tonal portada pelos internados. Belamente metaforizada na passagem da longa cauda de um vestido para representar a loucura da Ofélia shakespeariana, confrontando-se com instantâneas cenas de despojamento indumentário, ressaltadas pela  afinada iluminação de Alessandro Boschini.

Seja num formato ou no outro, imprimindo sempre uma sensitiva e tocante gestualidade pela mimetização de movimentos (Dani Cavanelas) de uma corporeidade que dança, na plena sintonia das duas atrizes/bailarinas, a textualidade ouvida em off. E completada nos acordes de uma funcional trilha fragmentária (Marcelo H), no entremeio de silêncios, ruídos e citações de antológicas canções populares.

Sob um instigante comando diretorial e a luminosidade performática de duas atrizes, Uma Mulher ao Sol conceitualiza um teatro de sotaque artaudiano capaz, enfim, de expressar, em seu cruel onirismo, o desalento de um personagem com alma e sangue...

 

                                          Wagner Corrêa de Araújo

 

Uma Mulher ao Sol está em cartaz no Teatro Poeirinha/Botafogo, de quinta a sábado, às 21h; domingo, às 19h. Até 30 de abril.

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