RETROSPECTIVA TEATRAL 2022 : SOB REFLEXOS ESPECULARES DE UMA VERDADE CÊNICA ENTRE A POESIA E O PÂNICO

Uma Revolução dos Bichos. Bruce Gomlevsky, direção. Outubro/2022. Foto/Dalton Valério. 

 

Se a Temporada Teatral 2022 já apresentou novos ares no processo de recuperação, em final de biênio pandêmico com o sequencial retorno aos palcos presenciais, ainda assim enfrentou tempos difíceis diante de uma crescente crise econômica, paralela ao descaso governamental às políticas de incentivo cultural.

Em São Paulo foi mais imediata a retomada mas nos palcos cariocas o desafio foi maior, ampliado pelo fechamento ou pela lenta volta de vários espaços teatrais. Onde a primeira realização mais ousada, dentro de um contexto de volta aos espetáculos de maior custo, foi Barnum-O Rei do Show. Iniciativa corajosa do produtor/diretor Gustavo Barchilon para tornar mais luminosa a retomada em palcos brasileiros do grande musical a la West End londrino com um sotaque do Cirque du Soleil, sob um primado subliminar de versátil inventividade cênica.

Nesta reconquista do aplauso público, não se pode deixar de destacar o afirmativo êxito de Intimidade Indecente, de Leilah Assumpção. Numa artesanal gramática cênica conduzida com perceptível empenho por Guilherme Leme Garcia, em energizada sintonia com a força carismática de dois atores (Marcos Caruso e Eliane Giardini).


A Última Ata. Victor Garcia Peralta/Direção. Novembro/2022. Foto/Cristina Granato.

Enquanto esta peça originou-se de uma montagem em Portugal, Tudo (do argentino Rafael Spregelburd) vinha de pré apresentações isoladas ou em festivais. Numa escritura em que a palavra cênica é contextualizada através de uma metafórica visualidade gestual, mas sem nunca perder a prevalência visceral de seus provocativos signos verbais, na potencializada versão de Guilherme Weber para um afinado elenco.

Três Mulheres Altas, sob convicta direção concepcional de Fernando Philbert,  alcançou um brilho particularizado na temporada por sua conotação de reconhecido teatro  de repertório, marcado por uma dialetação pirandelliana entre o autor (E. Albee), os personagens e os atores (no tríplice alcance de uma superativa performance feminina), em fabulário despudorado e ferino sobre a decrepitude de uma mulher nonagenária (na estelar personificação de Suely Franco) .

Duas peças se identificaram na sua proposta de denúncia das mazelas do universo político, através de seus signos mais burlescos como o descompromisso cívico parasita. Caso de A Última Ata, de Tracy Letts, sucesso recente da Broadway a uma transposição especular para a nossa realidade, em incisivo comando direcional de Victor Garcia Peralta para um elenco de craques.

E, também, Dignidade, do catalão Ignasi Vidal, uma necessária incursão dramatúrgica para definir a habitualidade corrupta de nossos candidatos eletivos, ao colocar em questão o desafio entre a escolha da postura ética e a prevalência viciosa da vantagem pessoal. Na maestria de uma direção (Daniel Dias da Silva) de envolvência crítica e reflexiva e de uma irrepreensível dupla atoral (Cláudio Gabriel e Thelmo Fernandes).

Enquanto Você Voava, Eu Criava Raízes. Cia Dos a Deux. Setembro/2022. Foto/Renato Mangolin.

Comemorando os 35 anos da Armazém Companhia de Teatro, uma das mais resistentes e importantes do País, sob o sólido comando de Paulo de Moraes, Neva, de Guillermo Calderón, uma mais que oportuna peça chilena. Polemizando por intermédio de uma postura de metateatro, além de qualquer conexão de tempo e espaço, a partir do compasso tchekhoviano russo de 1905, para explicar emblematicamente os absurdos políticos da história ditatorial chilena.

Mais uma montagem referencial, desta vez da lavra de Bruce Gomlevsky, em afiada releitura dramatúrgica, titulada, aqui e agora, como Uma Revolução dos Bichos,  sustentando-se no dimensionamento literário inicial de Orwell, com um olhar ancorado na contemporaneidade. Num surpreendente trabalho coletivo performático e de plasticidade cênica-gestual, a partir da engajada versão textual de Daniela Pereira de Carvalho.

André Curti e Artur Luanda Ribeiro acionaram sua pulsão inventiva, situados na confluência de linguagens artísticas do teatro à dança, para retomar o imaginário onírico que vem marcando suas criações, ao longo dos últimos anos, através da Cia. Dos a Deux. Sob introspectivos gritos de silêncio expressos por visceral abordagem gestualista, em sua mais recente realização cênica, simbolicamente denominada Enquanto Você Voava, Eu Criava Raízes.

Entre outras provocadoras propostas monologais (como o transcendente olhar contemporâneo anti historicista  do Pedro I por João Campany e a corporeidade verbal desmistificadora, na saga euclidiana de A Luta, segundo a representação de Amaury Lorenzo), Ficções se estabelece numa contundente dialetação dramatúrgica na sua livre e personalizada releitura do livro inspirador. Transmutando-se, sem dúvida alguma, em 2022, no perceptível campeão dos palcos, do  público e da crítica.  

Onde o escritor/historiador (Yuval Harari), o dramaturgo/diretor (Rodrigo Portela) e a atriz (Vera Holtz) se confundem todos como personagens portadoras de polêmica mensagem, sob um sotaque pirandelliano. Sintonizados, sempre com uma sólida funcionalidade das atitudes criadoras, em abissal mergulho numa atemporalidade surrealista de delírio e verdade cênica.

                                        Wagner Corrêa de Araújo


Ficções. Rodrigo Portella, dramaturgia/direção. Vera Holtz e Federico Puppi. Novembro/2022. Foto/Ale Katan.

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