TRIBUTO AFETIVO À DEFINITIVA DESPEDIDA DE LYGIA FAGUNDES TELLES

Lygia Fagundes Telles, por Eduardo Knapp/ Folhapress.


Há exatos cinquenta e dois anos fui surpreendido pelo presente de uma carta datilografada assinada por Lygia Fagundes Telles, mal sabendo ela que a data – 17 de novembro – era o dia de meu aniversário. Era uma resposta a uma crítica sobre seu livro (“Antes do Baile Verde”) que eu publicara na imprensa juizdeforana com a intenção, à época, de se dedicar também à literatura, pretendendo dar continuidade a um legado familiar  de escritores mineiros.

Reproduzo aqui trechos desta epístola que incentivou os caminhos vocacionais de um jovem de 21 anos que sonhava ser escritor.

“Só agora, regressando de minha viagem a Portugal  (onde fui assistir ao lançamento da edição portuguesa de “Antes do Baile Verde”) só agora tive a satisfação de ler a crítica, a excelente crítica, quero ressaltar. Você não calcula como fiquei contente por você ter gostado, a opinião dos jovens é sempre muito importante para mim: foi a alegria primeira que assinalou a minha volta ao Brasil”.

E continuava dizendo (percebam como suas reflexões são inteiramente pertinentes com o triste desatino vivido pelo Brasil contemporâneo, se comparado similarmente à trágica saga trazida pela Revolução de 64, adentrando-se pelos anos 70 em diante):

“Ame-o ou deixe-o, não é mesmo? Eu deixaria, sim, que ando bastante chateada com as  coisas por estas bandas. Mas chateada mesmo. Contudo a gente sempre volta. A gente sempre volta, é horrível, pior do que tudo, ficar longe e repetindo lá longe a canção do exilio, “As aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá”... E não gorjeiam mesmo, o senhor Gonçalves Dias tinha toda razão”.

A partir daquela carta, qualquer livro inédito que Lygia publicasse ou os mais antigos em novas edições, foram chegando pelo correio através dos anos, por mais de duas décadas, acompanhados sempre por lindas e afetivas dedicatórias. A estas alturas já tinha trocado os ares da mineiridade, entre Juiz de Fora e Belo Horizonte, no encantamento “roseano” das montanhas das Gerais, pelo signo solar  das terras e mares cariocas.

“Mas voltando à sua crítica : você me deu motivo duplo de satisfação, primeiro, porque gostou do livro e esse o motivo mais importante, é claro. Segundo, porque acho ótimo isso dos jovens se interessarem pela crítica. Não temos mais críticos, os poucos que restaram já não querem saber de mais nada, um cansaço, uma falta de estímulo... Veja como é reduzido o número dos que se dedicam a esse gênero tão necessário. E tão esquecido”...

Nunca mais me esqueci desta mágica inventora de letras e sonhos, enquanto fui deixando a crítica literária por experimentos analíticos entorno da música, das artes plásticas, da dança e do cinema. Acabando em outro ofício de escritura – o das artes cênicas. A partir daí, compartilhando virtualmente com a escritora críticas de espetáculos teatrais inspirados em sua obra como, por exemplo, As Meninas, na instigante montagem dirigida por Yara de Novaes, em 2015.

Quando Lygia Fagundes Telles publicou seu romance As Meninas (1973) vivia-se o apogeu da ditadura militar, com todas as suas formas de opressão sobre as liberdades e as consciências individuais. Tais reflexos se faziam sentir especialmente sobre a juventude, criando um clima de perplexidades e indagação sobre as posturas comportamentais e no próprio comedimento da expressão de um livre pensar filosófico, moral ou político.

Na época, o livro surpreendeu pela ousadia de tratamento de um tema quase considerado tabu pelos princípios que regiam o sistema político – o conflito em que foi mergulhada toda uma geração de jovens diante do que acontecia ao seu redor, tanto nos circuitos familiares como no âmbito social. Naquele momento difícil, mais que nunca era necessário o papel de conscientização exercido pela palavra literária, confirmado pela própria autora, Lygia Fagundes Telles em fundamental depoimento:

A função do escritor? Escrever por aqueles que não podem escrever. Falar por aqueles que muitas vezes esperam ouvir da nossa boca a palavra que gostariam de dizer. Comunicar-se com o próximo e, se possível, mesmo por caminhos ambíguos, ajudá-los no seu sofrimento e na sua esperança”.

Obrigado Lygia Fagundes Telles, pelo privilégio de ter compartilhado, afinal, do estímulo de sua amizade epistolar, ora através de tantos livros gentilmente enviados,  ora por suas reflexões literárias marcando de vez aquele jovem que, hoje, não passa de um velho senhor que, no uso de suas palavras, também anda “tão chateado com as coisas por estas bandas, mas chateado mesmo”...

 

                                          Wagner Corrêa de Araújo




Um comentário:

Sandra Ney disse...

Que texto encantador. Na medida da lembrança, do agradecimento, da nostalgia. O último parágrafo foi o fechamento perfeito para a sua delicada crônica. Lygia Fagundes Telles merece mesmo todas as nossas homenagens.

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