Quando se fala em E.T.A.Hoffmann (1776/1822), vem logo à lembrança personagens inesquecíveis, com o quais este romântico alemão atravessou gerações. Foram, afinal, de sua lavra as narrativas que levaram aos balés Coppélia e Quebra Nozes, além de sua própria trajetória criadora, como autor de literatura fantástica, inspirar o libreto da ópera de Offenbach –“Os Contos de Hoffmann".
Tendo já realizado um musical a partir das histórias dos Irmãos Grimm, José Mauro Brant, desta
vez, buscou Hoffmann no conto O Pequeno Zacarias, acrescentando o subtítulo - Uma Ópera Irresponsável,
com a parceria musical de Tim Rescala. A trama dramatúrgica tem como protagonista um boneco/fantoche
que, desde o berço, impressiona pela feiura mas que, em contrapartida, revela
um privilegiado resplendor na sua trajetória existencial, marcada por fadas e
bruxarias.
O tema envolve vários personagens e muitas idas e vindas
cronológicas, o que na ficção literária fica perceptível com o alter ego de um narrador, não
beneficiando, por sua vez, a adaptação teatral, com certa falta de clareza e
por uma incomoda extensão (acentuada com o desequilíbrio do alongado primeiro
ato).
Por outro lado, a refinada concepção plástica da cenografia
(Miguel Pinto Guimarães), o requinte dos figurinos (Carol Lobato), a climática
iluminação (Paulo César Medeiros) e o dinâmico comando cênico de José Mauro
Brant, ao lado de Sueli Guerra/dublê de coreógrafa, são uma festa estética aos
olhos da plateia.
E é aí que aparece a força matriz da brilhante performance do
elenco de cantores/atores (Soraya Ravenle, Sandro Christopher, Janaína Azevedo,
Wladimir Pinheiro, Chiara Santoro, Rodrigo Cirne, Marcello Sader e do próprio
diretor/dramaturgo José Mauro Brant). Capaz de enaltecer, às alturas, as ricas
nuances da partitura lírico/musical de Tim Rescala, tornando simbológica, enfim,
esta viagem nas asas da canção.
Uma das maiores surpresas da temporada 2014 foi, sem dúvida alguma, a deliciosa e inventiva concepção de teatro musical que Daniel Herz deu ao texto original de Beaumarchais - As Bodas de Fígaro, com a brilhante tradução de Barbara Heliodora e através de adequada utilização da composição lírica de Mozart.
Na sua primeira representação em 1786, a ópera criou polemica
por abordar, com irônico realismo, uma temática revolucionária e até subversiva
para os padrões da época - os abusos do poder, numa sátira aos desmandos do
direito feudal sobre as classes menos favorecidas.
O Conde Almaviva
(Ernani Moraes) quer fazer valer o seu direito sexual da primeira noite com a
empregada (Carol Garcia), antes do dia das núpcias dela com Fígaro (Leandro Castilho). Mas a Condessa (Solange Badin), com a cumplicidade da serva (Carol
Garcia), trama uma intrigante trapaça contra a indiferença e a frivolidade do
conde, se envolvendo com o jovem pajem Cherubino
(Tiago Herz), com a ingerência, entre outros personagens, de Dom Basílio (Alexandre Dantas) e Marcelina (Cláudia Ventura).
Este picaresco enredo, com seu autentico clima de farsa de
costumes, tem um tratamento cênico de incrível vivacidade, primando por uma
original opção atemporal. Acentuada pelo score musical de Leandro Castilho,
num mix preciso da partitura mozartiana com sonoridades populares
brasileiras.
Aqui os atores representam, cantam sem aportes lírico/vocais
(com exceção de Carol Garcia) e executam a parte instrumental, mantendo quase
na íntegra a ópera original. Sempre com o apoio dos elucidativos figurinos de
Antonio Guedes e do dinâmico gestual de Márcia Rubin, numa perfeita interação
do movimento cênico com o substrato musical.
Esta performance acurada do elenco, com timing e nuance humorística, dos grandes aos menores papéis, faz
funcionar todas as querelas e “imbróglios”, no duelar da atitude zombeteira
de Fígaro com os desmandos de Almaviva, da postura maliciosa de Suzana com as frustrações da Condessa. Tendo, como contraponto, as
ambições amorosas juvenis de Cherubino numa talentosa revelação atoral de Tiago Herz.
Recriando sem desfigurar, esta produção de As Bodas de Fígaro faz eco ao fenômeno
das versões mozartianas contemporâneas, de Ponnele
a Sellars, passando por Brook e pelos festivais de Salzburgo. E,
enfim, ao manter a intenção dramatúrgica de Beaumarchais
e a substância musical de Mozart,
provando, mais uma vez, além de tempo e de espaço, época e cronologia, a
permanência e a atualidade do mítico Amadeus.
AS BODAS DE FÍGARO. Dezembro 2014. Foto/ Paula Kossatz. |
Fidélio teve uma trajetória conturbada desde a sua primeira versão (1805), fracassada, até a definitiva de 1814, um sucesso.
Esta única incursão operística de Beethoven,
inspirada na dramaturgia original de Jean
Nicolas Bouilly, ainda sob os efeitos ideológicos da Revolução Francesa,
fascinou o compositor por seu caráter de ode lírica à liberdade através do
amor.
Sem nenhuma concessão ao imediatismo melódico e a
malabarismos vocais tão ao gosto do público da época, a ópera seguiu outro
caminho, apostando na solidez da arquitetura musical/dramática e no sensível
apelo humanista do libreto. Pouco frequente no repertório usual das temporadas
(chegando mesmo a ser apresentada em versões italianas, como sua première no
Municipal carioca em 1927), apesar de tudo impressiona por sua tessitura
orquestral e vocal, capaz de colocá-la na mesma dimensão beethoviana da Missa Solene e da Ode à Alegria, no epílogo da Nona Sinfonia.
Neste aspecto, a montagem foi valorizada pela significativa condução
orquestral da OSTM por Isaac Karabtchevsky, no preciso dimensionamento dos diferentes
planos sonoros, acentuados, mais ainda, pela vigorosa consonância do Coro do
TM. Este último, sem dúvida, responsável pela culminância interpretativa na
calorosa cena final do Coro dos Prisioneiros, no Primeiro Ato.
Quanto ao elenco, teve um desempenho vocal satisfatório,
atendendo, às difíceis exigências da partitura. Embora sem brilhos absolutos,
vale destacar a linha cantante de solistas, entre outros, como a soprano
norte-americana Julie Davies, em sua
expressiva coloratura dada a Marzelline.
Ou o tenor argentino Santiago Ballerini,
de apuro convincente como Jaquino. E ainda a feliz intervenção, mesmo em breves frases, do
tenor brasileiro Ricardo Tuttmann (Prisioneiro). Valendo ainda ressaltar pela
especificidade vocal alemã adequada, Martin Homrich (tenor), Sebastian Noack (baritono)
e Paul Armin Edelmann (baixo).
O questionamento da montagem ficou na pergunta sem resposta
para o público no que se refere à concepção cênica. No intervalo entre os dois
atos prevaleceu a dúvida sobre se esta plateia marcava sua presença num concerto cênico, para uma
ópera em forma de concerto ou, talvez, para a um drama lírico sob olhar contemporâneo.
Polemizou, enfim, a visão particularista de uma excepcional
encenadora teatral (Christiane Jatahy), de habitual convicção vanguardista, em sua estreia no gênero operístico,
com a proposta de quebra total de paradigmas do espetáculo lírico, no mix de
experimentações estéticas e diversidade de linguagens. Onde o exclusivo uso da ambientação do teatro além do palco, em
detrimento da construção de cenários, a utilização de figurinos cotidianos sem
unificação visual (Antonio Medeiros/Tatiana Rodrigues), além da quase não representação
gestual do elenco (preso a cadeiras), interferiam na apreensão da essência do
drama.
Vazio que não foi preenchido nem mesmo com a exibição do belo
filme da diretora, ficando o desvendar do enredo ora distanciado da performance
cênica, ora circunscrito ao Singspiel
(textos falados) e à instantaneidade narrativa da exibição das legendas. E fragilizando, assim, sua reflexiva compreensão que, ali, se
faz mais que necessária, pois já dizia , em 1950, o maestro Wilhelm
Furtwängler:
“Fidélio
é , em verdade, mais uma missa que uma ópera. Os sentimentos expressos em suas
palavras a aproximam de uma religião, a religião da humanidade”.
Wagner
Corrêa de Araújo
FIDÉLIO. Ópera em concepção contemporânea por Christiane Jatahy. Abril de 2015. TMRJ. Foto/Divulgação. |
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