LIQUID VOICES - A HISTÓRIA DE MATHILDA SEGALESCU. Foto/João Caldas Filho. |
Toda a extensa e relevante
criação cênico-musical de Jocy de Oliveira, artista multimídia, pianista
e escritora, sempre esteve conectada com as causas mais emergentes de seu
tempo, além de ser detentora de um mérito absoluto em termos mundiais, por sua
condição de mulher compositora com nacionalidade brasileira.
Apesar de tantos anos de seu incisivo engajamento com um
oficio artístico que se desdobra em inúmeras obras de prevalente sotaque
vanguardista e substantivo experimentalismo inventor, ela ainda assim sente a
resistência discriminatória, em pleno terceiro milênio, ao empoderamento do
feminino.
A mesma que já existia no século XIX e foi capaz de cercear o talento
musical ascendente de compositoras como Clara Schumann e Alma Mahler, ambas
carregando na frustrada carreira, ironicamente, o peso do sobrenome e do
convívio com maridos célebres na arte musical.
Situacionismo não muito diferente no Brasil, onde o
reconhecimento completo ficou quase que restrito às inúmeras autoras da MPB, desde o pioneirismo
antecipador de Chiquinha Gonzaga, enquanto é praticamente raro o acato àquelas
dedicadas ao domínio e à vivência da linguagem musical contemporânea.
Caso do expressivo legado de Jocy de Oliveira, desde sua escritura sinfônico-camerística às suas nove óperas, ao qual se inclui a mais recente delas Liquid Voices – A
História de Mathilda Segalescu. Desta vez indo mais longe na pesquisa do
cruzamento de linguagens artísticas, na sua concepção voltada à conectividade
da representação operística com o cinema, o teatro, a performance
plástico/coreográfica, no entremeio dos mais avançados recursos cinético-virtuais.
Tendo acompanhado de perto o repertório cênico-composicional
de Jocy de Oliveira desde que, como editor, roteirista e diretor de programas
culturais da ex TVE/RJ, tivemos o privilégio de participar do processo
transformador em especiais da emissora com duas de suas óperas, no caso
Liturgia no Espaço e Fata Morgana. Em todas elas, com prevalência de
personagens e vozes femininas, numa proposta sempre de fusão de diversos
segmentos estéticos convergindo em mágico e ritualístico dimensionamento
cosmogônico, sem fronteiras entre a ancestralidade, o tempo presente e o tempo
futuro.
Em Liquid Voices, a partir da narrativa trágica do naufrágio
em 1941 do Struma no Mar Negro, com aproximadamente 800 passageiros, entre
tripulantes e refugiados judeus, escapando da perseguição numa Romênia
nazifascista, na esperança de alcançar a Palestina. Continuada numa
contextualização atemporal e metafórica, entre o documental e o ficcional,
mostrando, em 1967, os despojos do navio com seu único sobrevivente um simbólico
piano de cauda, encontrado por um pescador árabe (tenor Luciano Botelho) que,
então, vê ali o espectro e ouve a líquida voz de uma imaginária atriz e cantora judia
Mathilda Segalescu (soprano Gabriela Geluda).
Em potencializada proposta cenográfica (dos derradeiros
trabalhos de Fernando Mello da Costa) transcendentalizando plasticamente as
ruínas do antigo Cassino da Urca, em dois planos e ambiências diversas, num
surpreendente paisagismo de sugestionamento náutico-marítimo. Ressaltado por
efeitos luminares (Renato Machado) com velas acesas, fogs e sombras numa
instalação entre escombros, além da visualização de oníricas interferências de
morcegos reais atravessando o espaço.
Contando, também, com a funcional indumentária (Ticiana
Passos) de caráter multifacetado viajando em compasso secular, num mix de
épocas e estilos, do religioso ao profano, do cotidiano ao fantasioso.
Acentuado por um gestualismo coreográfico (Toni Rodrigues) ora cerimonioso
ora sensorial.
O Ensemble Jocy de Oliveira, com seus dez instrumentistas,
entre músicos residentes e convidados, executa uma partitura que faz uma
passagem interativa entre a tradição (cântico medieval, ecos de minaretes árabes e
acordes ibéricos) e o referencial do Lied alemão e do rock contemporâneo,
intermediados sob uma base modal, eletro acústica e serialista.
Com aportes de registro vocal, ora quase coloratura ora
em sotaque singspiel, a soprano Gabriela Geluda impressiona por seu ousado
presencial performático que marca sua particular relevância como atriz/cantora,
tão pouco comum nas habituais intérpretes líricas do repertorio tradicional. Criando um provocador contraste
estilístico com a postura mais dramática de Luciano Botelho, na sua bela
tessitura de tenor e entrega ao personagem
no modus operandi a la Grand Opéra, por assumido direcionamento cênico-musical
(Jocy de Oliveira).
Autônoma realização fílmica ou o prevalente registro
documentário de uma performance operística? Questionaram alguns críticos
radicalmente ligados ao conceitual cinematográfico e pouco afeitos ao atual
métier operístico. E sem estarem atentos
a este novo olhar do filme-ópera, armado na busca investigativa não de meras
transposições palco/tela, mas de instigantes formatos estéticos com o uso dos
apuros tecno e multimídias.
Sem falar no ideário de liberdade do experimento e da invenção artística, tão necessários em tempos tão obtusos como o de nossa atual
realidade político-cultural, e que fazem de Liquid Voices um libelo e uma ópera
manifesto contra todas as formas de intolerância. A partir da tragédia das
diásporas com reflexo especular nas diferenças de raça e de opções sexuais, religiosas e
ideológicas, incluídos aqui quaisquer tipos de retrocesso e de obscurantismo. Convergindo sem preconceitos, tal como na esclarecedora palavra poética de T. S. Eliot :
“O tempo presente e o tempo passado estão, talvez, presentes no futuro e o futuro contido no passado”.
“O tempo presente e o tempo passado estão, talvez, presentes no futuro e o futuro contido no passado”.
Wagner
Corrêa de Araújo
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