FOTOS/MAURO KURY |
“Um veterano gay do
Vietnã. Quando eu era militar, eles me condecoraram por matar dois homens – e
me expulsaram por amar um”. Epitáfio no túmulo de um ex integrante da Força
Aérea americana, Leonard Matlovich,
morto pela Aids em 1991.
Em sintomático referencial, exatamente no ano de estreia
(1991) da primeira parte de Angels in
America, metafórica trajetória sobre o preconceito na descoberta e na
disseminação da doença e seus reflexos políticos/sociais nas décadas finais do
milênio. Épica concepção dramatúrgica de
Tony Kushner, com versão definitiva,
em duas longas partes, dois anos depois na Broadway.
Que tem, agora, a montagem na íntegra em palcos brasileiros (havendo
uma versão anterior, de 2005, apenas da Parte I, sob o comando de Iacov Hillel)
e, desta vez, por Paulo Moraes e a Armazém Companhia de Teatro. Conservando intacto o substrato
original, em visceral abordagem cênica e absoluta preservação de seu caráter
icônico num mix verista e onírico,
com apurada tradução de Maurício Arruda Mendonça.
Com extensa progressão narrativo/dramática, Angels in America, no entremeio da dúplice sub titularidade, nas duas horas e meia para cada uma delas, indo de O Milênio se Aproxima à Perestroika, tendo funcional conexão de
temas e personagens, a partir de implícita convivência entre o suporte realista e o dimensionamento metafísico.
Favorecida no ideário estético de um carismático comando
teatral por Paulo Moraes na mágica sintonização com um harmônico octeto atoral.
Em complexa representação psicofísica, entre a dor corporal e a desestabilização mental, diante do árido
enfrentamento de uma guerra, sem tréguas, de doutrinação da sociedade
homofóbica a favor da tradição e do conformismo.
Ampliada no doloroso
desamparo do jovem Prior Walter (em irrestrito apelo performático de Jopa Moraes), infectado pelo vírus HIV e, ao mesmo tempo, abandonado pelo namorado Louis
(por um convincente Luis Felipe Leprevost) sob a
recorrência de delirantes visões
de um anjo (Marcos Martins), arauto de ameaçadoras profecias para um tempo apocalíptico
Onde as instâncias consoladoras do amigo/enfermeiro Belize, na espontânea entrega de Thiago Catarino, dão vazão a um irreverente carácter como negro, gay e drag, em irônica e bem
humorada sutilização de seu condicionamento à exclusão social.
E, também, como mordaz plantonista do hospital onde foi parar
o controvertido advogado Roy Cohn (Sérgio
Machado) em terminal estágio da Aids, revolto por sair do armário e, como extremado
racista, por estar aos cuidados de um black.
Além de macarthista convicto, sendo, ainda, assombrado
pelo espectro da judia Ethel Rosenberg
(Patrícia Selonk), que ajudou a condenar à pena capital.
Em irradiante dosagem de cínico e raivoso escárnio, no
contraponto da materialização da fragilizada e ambígua postura masculina de seu ex-assessor jurídico Joe (Ricardo
Martins), ao desnudar-se homossexual para a mãe (P.Selonk) e para a depressiva esposa Harper Pitt (em sensorial atuação de
Lisa Eiras).
Completando o seu envolvente naipe de interpretações Patrícia
Selonk, mais uma vez, preenche com irreprimível autoridade cênica, as díspares
gradações psicológicas na tradução e no traçado de seus outros personagens,
precedida pela luminosidade introspectiva tanto como o velho rabino, no prólogo do Milênio, como no desalento de último
bolchevique, introduzindo a Perestroika.
Neste vigoroso jogo teatral encimado pela força de um elenco de
craques com direção empática de Paulo de Moraes, o minimalismo da paisagem cênica
(Paulo de Moraes e Carla Berri), ainda que para um palco de grandes dimensões, tem, aqui, surpreendente resultado tecno/artístico.
No bom gosto indumentário (Carol Lobato), no primado de
marcações luminares ambientais (Maneco Quinderé) e na plasticidade dos efeitos
videográficos (Rico e Renato Vilarouca), sob as irradiantes intervenções
sonoro/percussivas da trilha autoral
de Ricco Viana.
Com ecos especulares e reflexivos na contemporaneidade, em momento
de intolerável retrocesso biopolítico quanto às conquistas libertárias pelo
relacionamento afetivo entre iguais. Extensivo à onda de conservadorismo moral
e de obscurantismo cultural, sob uma patética e remissiva postura extremo/direitista de nossas governanças.
Wagner Corrêa de Araújo
ANGELS IN AMERICA está em cartaz no Teatro
Riachuelo,Cinelandia/RJ. Na sexta às 20h, a primeira Parte I – O Milênio se
Aproxima; no sábado, Versão integral, às 17h e às 20h e no domingo, às 18h,
a Parte II – Perestroika. 300 minutos. Até 28 de julho.
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