“Uma produção inédita
de Fim de Jogo que ignora minhas instruções de palco é completamente inaceitável
para mim”... E a partir dessa convicta afirmação de Samuel Beckett os defensores
jurídicos do seu legado dramatúrgico nunca hesitariam em provocar litígios até
que a obra caísse, em caráter definitivo, no domínio público.
Este referencial poderia ser válido para a última realização
do Amok Teatro se não ficasse perceptível
que a proposta de Jogo de Damas admite seu lastro inspirador na peça original de 1957
– Fim de Jogo – mas num processo de transmutação com releitura
autoral de Stephane Brodt.
Através de uma livre transposição de sua escritura cênica,
com nova textualidade e na síntese para dois personagens, embora conserve
intacto o substrato temático claramente beckettiano,
extensível à sua concepção cenográfica e diretorial (na dúplice artesania de Stephane Brodt e Ana Teixeira).
Ao preservar a claustrofóbica ambientação de desalento e
desespero de personagens céticos, em idade provecta, que nada esperam senão a sensação de estarem já morrendo, na decadência física e no absoluto nonsense desta passagem terminal entre a inutilidade da vida e a proximidade da morte.
Num “interior vazio”, remetendo
à desejada idealização cênica do próprio Beckett, ressaltado por contrastante tessitura,
ora sombria ora solarizada, do desenho de luz (Renato Machado). Sob os acordes do teatro de vozes e sonoridades sacro/ritualísticas
do estoniano Arvo Pärt (em envolvente recorte musical por Gabriel Petit) sublinhando melancólica desolação em clima pré-apocalíptico.
Dando continuidade a uma pesquisa psicofísica do Amok Teatro sobre a representação feminina, a partir desta personificação na tragicidade shakespeariana de Ricardo III,
em Jogo de Damas há um proposital transvestismo
dos atores protagonistas em duas anciãs - Clara ( Stephane Brodt ) e Emma ( Gustavo
Damasceno ). Respectivamente, remetendo à trama de Beckett, no submisso Clov
atendendo às demandas impacientes e rancorosas do cego e paralítico Hamm.
A dominação e o servilismo, a dolorosa limitação da fisicalidade e o
desalento por quaisquer perspectivas redentoras, o delírio e o onirismo em torno da vazia paisagem além da única janela, fazem prevalecer a sensação de sufocante finitude de dois
velhos guiados apenas pela miserabilidade da condição humana na iminência da própria finitude.
Expressando-se, ora em modulada sutilidade das falas e do detalhismo
gestual de Stephane Brodt, ora com rompantes
de tensão nos apelos nervosos de uma angústia com nuances de maledicência, presencial no imobilismo
corporal de Gustavo Damasceno. Como se este, afinal, replicasse as palavras de Beckett – “Um dia você será cego, como eu. Estará
sentado lá, falando no vazio, no escuro, para sempre, como eu”...
No preciosismo formalista e tragicômico de um Jogo de Damas com intrincados lances mallarmaicos de dados, no
entremeio de um resultado especular que o coloca entre o reflexo e a autenticidade, prevalece outro luminoso investimento estético do Amok Teatro sintonizado com avanços investigativos na dramaturgia contemporânea.
JOGO DE DAMAS está em cartaz no Sesc/Copacabana (Mezanino),
de quinta a domingo, às 20h. 75 minutos. Até 07 de Julho.
Nenhum comentário:
Postar um comentário