FOTOS /MAURÍCIO MAIA |
Reflexão de Samuel Beckett numa de suas incursões
ficcionais (O Inominável):
“...desmoronando-me sob minha própria pele e osso, de verdade, estourando de
solidão e de esquecimento, a ponto de duvidar de minha existência, e ainda,
hoje, não creio nela nem um segundo”...
Quando a atriz, diretora e dramaturga Isabel Cavalcanti
concebe mais uma de suas artesanais investigações, dos estudos ensaísticos à
suas concepções cênicas a partir da obra beckettiana, abrem-se outras portas
de percepção para decifrar o instigante universo deste mistificador mor do Teatro do Absurdo.
E, indo além, com referencial para a crise da contemporaneidade
civilizatória, ainda que passado mais de meio século de suas teorizações
filosófico/literárias aplicadas ao palco, com nítida aproximação inclusive da perplexidade diante do difícil estado de sobrevivência de significativa maioria dos cidadãos de um certo país do
hemisfério sul.
Assim como foi composto este retrato em tempo de sangue e
lágrimas do pós-guerra, tendo como pulsão
a falência dos valores, após o susto do genocídio, da bomba atômica, do
irrestrito fim das crenças espirituais e politicas e da impotência frente a um destino adverso.
Mas que, também, acabou se transubstanciando no reflexionar ficcional e cênico, entre a
poesia e o caos, em memorial da
desconstrução do espaço e do tempo, do silencio, da solidão e da dissolução no
vazio do existir, a partir do inventário criador e autocrítico de Samuel Beckett.
E que é retomado por Isabel
Cavalcanti na peça The And (em
dúplice realização diretorial com Claudio
Gabriel), com outro parâmetro transformador
da habitual desconexão, da proposital lacuna e do nonsense potencializados na escritura cênica do autor irlandês, num
suporte de maior acessibilidade às significações do aprisionamento do homem
contemporâneo.
Seja através do cruzamento de intertextos autorais da
dramaturga nos recortes das novelas iniciais do dramaturgo, além de ousada inclusão de uma antológica passagem de
Machado de Assis ( Memórias Póstumas de
Brás Cubas) capaz de se conectar com a angústia existencial do anti-herói e
personagem, aqui contextualizado. No incisivo solilóquio da própria atriz/diretora(Isabel
Cavalcanti), em convicto e comovente presencial dramático, energizada e
sensorial fisicalidade(Cristina Amadeo).
Em concepção cenográfica(Fernando Mello da Costa)com viscerais
sugestões de demolição/devastação, indumentária detonada (em outro oficio do duplo
comando diretor) e sensitiva mobilidade luminar (Renato Machado), tudo sob um compasso alegro
ma non troppo da trilha de Marcelo Alonso Neves.
Na provocativa ambiguidade entre o verismo terminal do The End e a agoniada solução
onírica para o enigma do após, do
sequencial não ser no depois - na metafórica e significante transmutação, semântica e filosófica, do E em The And, em assumida releitura dramatúrgica de salvação.
Capaz de rastrear pegadas, nas entrelinhas da irracionalidade
e na inutilidade da busca, sinalizando contrapartidas à condenação do “maior delito do homem - o de haver nascido”(Beckett). Ou no
questionamento trágico da personagem: “Não
tenho mais a proteção da Terra, mas quando foi que eu tive a proteção da
Terra?”...
Nesta pergunta sem resposta, mesmo com uma até intencional performance lúdica, só há a absolvição pelo
alcance da palavra teatral, mistificada na denúncia e no
grito de rebeldia. E capaz de possibilitar, enfim, a libertação humana, ainda
que temporária e condicional, do cárcere do niilismo, neste lugar nenhum do não
ser e da não existência.
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