Nos seus ecos contra o preconceito racista e da luta pela
afirmação feminista, aos quais se juntam a opressão de uma árdua condição social
num pulsão de passagens de fome, núpcias e maternidade prematuras, trágicas mortes
familiares, conturbados casos de amor, entre outros muitos retratos de
adversidade, pode-se sim atribuir à vida e à arte de Elza Soares o tônus de um manifesto
político.
E não é por menos que o dramaturgo Vinicius Calderoni transforma
em leimotiv uma fala que conduz a trama musical/biográfica em Elza – “Sobreviver é um ato político” – capaz ainda de repercutir na
inventiva transposição para o palco por obra e graça de outra
surpreendente direção concepcional e coreográfica de Duda Maia.
Aqui, todos os caminhos levam à vontade de desconstruir a já
tão gasta e engessada fórmula do musical biográfico brasileiro, com sua
resistente e monocórdia nuance
alterativa, entre canções e fatos de vida, concentrada na representação
personalista de ídolos/signos na história da música popular brasileira.
Desta vez, a mitificação narrativa em torno da trajetória
existencial/artística de uma cantora brasileira
é subvertida na plena criatividade do seu desdobramento em sete
atrizes/cantoras, todas afinadas em ideário convergente ostentando o orgulho da potência vocal e corpórea simbolizada
na cor e na raça negra.
Em artesanal e conscientizado substrato do feminino que se
estende, inclusive, ao sexteto de incríveis e exímias mulheres instrumentistas
(Antônia Adnet, Georgia Camara, Guta Menezes, Neila Kadhí, Marfa e Priscilla Azevedo) sob o comando de um Pedro
Luiz energizando clássicas sonoridades de prevalência sambista com tessituras de contemporaneidade.
Aos quais se juntam os acertos das modulações luminares de Renato Machado e das
variações tonais de uma indumentária(Kika Lopes e Rocio Moure), entre tons
ocres e aquarelados, como um visual diversificado da vida e dos cantares de uma mulher símbolo de desafiantes
rounds.
Num arrojado aporte cenográfico ( André Cortez ) encimado por
uma placa aérea de metal e ampla ocupação do palco com latas d’água sugestionando
bacias de lavadeiras que, em composições plástico/esculturais com a
fisicalidade gestual das atrizes, chega, por vezes, a ter um sutil referencial
das construções cênico/coreográficas de Oskar
Schlemer na Bauhaus.
E onde, em cena, destaca-se um sintonizado elenco composto das reveladoras intérpretes
musicais/teatrais - Janamô, Júlia Dias, Késia Estácio, Krysthal, Laís
Lacôrte, Verônica Bonfim, com um
destaque muito especial para Larissa Luz, a de maior identidade com o sotaque
rascante e rouco da voz de Elza Soares.
Todas materializando-se cenicamente em convicta entrega ao dimensionamento psicológico e à compreensão
do personagem, com apurada técnica e talento, e expandindo, sem os vícios e maneirismos dos arroubos
virtuosísticos, a força de um elenco jovem e quase estreante.
Longe da queda nas tentações dos estereótipos do novelesco e melodramático nesta trajetória carregada de
marginalizações e desafetos na busca da aceitação social e do sucesso
artístico.
Em espetáculo com proposta estética de renovação do inventário dramático
no musical brasileiro, direto e sensorial na sua busca da interatividade palco/plateia e de
tarimbada gramática cênica com contraponto crítico / reflexivo.
Wagner Corrêa de Araújo
ELZA está em cartaz no Teatro Riachuelo/Cinelândia, quinta às
19h;sexta e sábado, às 20h;domingo, às 18h. 120 minutos. Até 30 de setembro.
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