Situado entre o teatro documentário, extensamente
desenvolvido a partir de E.Piscator, e o
teatro autobiográfico no espelhamento da
persona do ator ou do dramaturgo, desenvolve-se na primeira década deste século
o que se chamou de biodrama.
Teorizado pelo argentino Oscar
Cornago, ele impulsiona, através dos relatos biográficos reais, de gente
famosa ou não, transmutados no palco , na representação entre a verdade e o
ficcional, “as distintas possibilidades
de citar a realidade, para abrir espaço a isso que chamamos vida”.
Quando o dramaturgo Walter Daguerre incursiona pela
trajetória existencial/artística de uma americana naturalizada francesa desnudando
seus feitos como dançarina, performer, cantora, atriz ,humorista, ativista nas
causas políticas e raciais, ele confere à sua proposta cênica “Josephine Baker – A Vênus Negra” um
viés diferencial na sua abordagem e tematização.
Embora não consiga fugir do sequencial cronológico/biográfico, acaba
permitindo um encontro mais intimista e de identificação psicológico/afetiva
entre a atriz protagonista titular ( Aline Deluna) com cada espectador.
O que faz resultar, pela estetização teatral de Otávio
Muller, no estabelecimento de um corpo a corpo plateia/palco, em encontro
informal atriz/público, quebrando a quarta parede . Fissurando ,assim, o distanciamento
cênico entre observador-observado,da fala
inicial ao epílogo quando, convocados, juntam-se os dois lados, ritualmente, à performance .
Para isto concorrem as mudanças de figurino em cena e as
paredes nuas da construção ambiental (em realização dúplice de Marcelo
Marques) ,paralela ao desenho de luzes (Paulo Cesar Medeiros) propiciais ora ao recato
climático,ora ao sugestionamento feérico de um show.
Além da sensação de entrega a um comportamental despretensioso,
artesanalmente presente nas interferências do apurado trio musical (Dany Roland,Christiano Sauer e
Jonathan Ferr )no ato da representação.
Onde a grande surpresa é a similaridade física ,
gestual/coreográfica ( sob o olhar inventivo de Marina Salomon) e indumentária
com a “Vênus Negra”, valorando uma conferida comparativa na pequena mas
esclarecedora exposição(filmes, livros,fotos do precioso acervo de Evânio Alves), no foyer do teatro.
O comando diretorial de Otávio Muller no seu seguro domínio
da organicidade de um jogo, entre o teatro e a vida, incentiva o
potencial instintivo de Aline Deluna como uma predestinada estrela do teatro
musical.
Adequada, irrepreensivelmente, ao personagem, na convicta
atuação como atriz/cantora/dançarina , conquistando, assim, a adesão e a cumplicidade
da plateia.
Que ao testemunhar as nuances de exotismo, sexualidade, comicidade e
“selvagerias” de uma desafiadora do preconceito e da
opressão do feminino, acaba reflexionando, numa pulsão coletiva de biodrama verista e poético, pela libertária
identificação conceitual do outro(a personagem ) com a subjetividade dos olhares a ela direcionados.
Wagner Corrêa de Araújo
JOSEPHINE BAKER,A VÊNUS NEGRA está em cartaz no Teatro Maison de France,Centro/RJ, quinta a sábado, às 20h;domingo às 19h. 80 minutos. Até 28 de maio.
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