SÓFOCLES...SHAKESPEARE E BECKETT EM INVESTIGATIVO FORMATO MONOLOGAL

TRÁGICA 3. Agosto 2014. Foto / Victor Hugo Cecatto.

O verdadeiro sentido da tragédia, a par dos acontecimentos que a conduzem ao seu desenlace fatal, reside no dimensionamento psicológico do personagem heroico. É este que, no impacto de suas sofridas ações, conduz a plateia à libertação pela catarse. Razão maior da escritura trágica encontrada, assim, na sublimidade reflexiva. Causa e consequência da dolorosa intensidade das paixões humanas diante dos infortúnios do destino.

Na investigativa proposta do diretor Guilherme Leme Garcia, em Trágica 3, está implícito o destaque dado às heroínas do teatro ancestral grego, capazes de decisão individual, própria e corajosa, numa sociedade de predomínio patriarcal. Aqui, em monólogos recortados de três grandes tragédias clássicas de Sófocles e Eurípides, o elemento feminino alcança o mesmo status de dignidade e postura independente do homem, numa mais que milenar previsão dos direitos plenos alcançados apenas a partir do século XX.

A incisiva estética do espetáculo conjuga música, artes visuais, performance plástica, numa concepção contemporânea, tanto cenográfica (Aurora dos Campos) como textual, de personagens míticos como Antígona, Electra, Medéia. Com rico suporte técnico artístico reunindo elegante indumentária (Glória Coelho) a precisos efeitos luminares (Tomás Ribas), além das incidentais conexões sonoro/musicais com referencial greco-eletrônico (Letícia Sabatella, Fernando Alves Pinto e Marcelo H). 

Antígona levanta a voz de sua própria consciência contra os desmandos do poder político preferindo a condenação à morte que aceitar as ordenanças de um ato tirânico. O texto, original de Caio de Andrade, estabelece na pontual presença cênica de Letícia Sabatella, entre o canto, a palavra e o gestual, um grito de dor parado no ar. 

Na Electra, de Francisco Carlos, uma princesa mesmo submetida à condição de escrava, faz ecoar sua atitude insubordinada na obsessão de vingar o assassinato do seu pai pela própria mãe. Em visceral atuação Miwa Yanagizawa, ajoelhada em postura oriental, recria com a face hierática e braços abertos, qual animal ferido, seu desejo de vingança, acentuado pelos sanguíneos tons da iluminação.

Completando esta rica tríade teatral que enaltece a cena carioca, Medéia, onde o primitivismo bárbaro do amor transmutado em ódio, alcança a nuance de maior tessitura dramática na emotiva e angustiada interpretação de Denise Del Vecchio, em texto de clareza contundente do dramaturgo Heiner Muller.

REI LEAR. Novembro 2014.  Foto / João Caldas Filho.

Duas tragédias de Shakespeare conquistaram o público carioca pela forma peculiar como foram encenadas. Tanto o Ricardo III, dirigido por Sérgio Modena, como o Rei Lear, comandado por Elias Andreato, reduziram seu extenso cast de personagens a um único protagonista, mantendo, mesmo assim, as linhas mestras da narrativa dramatúrgica original.

Ricardo III, na concepção de Gustavo Gasparani e Sérgio Modena, conseguiu, com uma voz solitária, contar e representar um dos mais sanguinários enredos shakespearianos, de uma forma didática com tal clareza e interatividade, que a plateia saía do teatro, em intimista convívio dos passos desta intrincada trama de histórias paralelas. Em cena, Gasparani assumindo solitário, com ênfase e raro brilho, a violenta disputa por um mesmo trono opondo duas linhagens aristocráticas, tendo à frente a controvertida e soturna figura de Ricardo III.

Já no Rei Lear, ao ter seu reino doado, por circunstâncias advindas de sua extrema velhice, às suas três filhas, deixando-se, no entanto, ser ludibriado com a gananciosa e falseada cordialidade das mais velhas Goneril e Regan, ao deserdar a mais nova - Cordélia, pela sua incisiva recusa ao disfarce da mentira na apologia ao amor paterno.

Na montagem de Elias Andreato, a partir da tradução com adaptação concisa de Geraldinho Carneiro, o único protagonista é um ator (Juca de Oliveira) que divide sua trajetória dramática por seis personagens, centralizados em torno de Lear, o já quase decadente e fragilizado monarca em terminal idade.

Em apenas 60 minutos, o intérprete assume um papel de contador de histórias, muito próximo de uma leitura dramatizada, na qual as diversas facetas expressivas, as marcas vocabulares e o clima emocional são alcançados num exacerbado exercício de troca de personagens. Com uma cenografia minimalista (Fábio Namatame), incidental trilha sonora (Daniel Maia) e discricionário desenho de luz (Wagner Freire), paira acima de tudo a palavra e o gestual de um grande mistificador mor da arte teatral brasileira - Juca de Oliveira.

E se nesta adaptação é minimizada a dimensão politica e o tônus filosófico da tragédia clássica original, por outro lado, estas muitas vidas concentradas instantaneamente numa só personificação refletem, enfim, um trágico e poético retrato shakespeariano da própria condição humana: “Fugaz como o som, passageira como a sombra, curta como o sonho, rápida como o relâmpago em noite escura”.

Já no “Tríptico Samuel Beckett”, o diretor Roberto Alvim adapta para o palco, três textos ficcionais do escritor, poeta e dramaturgo irlandês, enfatizando sua concepção metafísica sobre o tempo como uma eternidade imóvel, inerte, absurda e sem nenhum sentido. Aqui, três mulheres de faixas etárias diferentes, em solilóquios amargos, abstraindo-se de qualquer narrativa linear, deixam apenas enunciar tematicamente o vazio, no embate solitário do homem em sua corrida direcionada à morte.

Conceitualmente a montagem é marcada pelo equilíbrio de recursos técnicos, a começar da concepção cenográfica e luminar (Roberto Alvim) pontuada plasticamente através de um esqueleto metálico, um score musical (L. P. Daniel) de melancólicas interferências, gradações de uma iluminação claro/escura e um figurino branco/preto (Juliana Galdino) - que remete à ambientação soturna das gravuras de Goya.

No primeiro monólogo (Para o Pior, Avante), Juliana Galdino se destaca num labiríntico jogo vocabular, fazendo de sua angústia existencial, um inventário linguístico que aproxima Beckett de seu conterrâneo irlandês James Joyce. Ao mesmo tempo que traz uma incômoda sensação ao público pelas variações radicais de tonalidades vocais - entre gritos e sussurros - no limite extremo do não significado das palavras.

Fazendo uso de uma loquacidade próxima de vozes infantis e uma sequencia de reflexões mais ingênuas da pré-adolescência de uma menina/moça, Paula Spinelli tem convicta performance no texto de menor sustentação da trilogia - Em Companhia.

Mas é no terceiro momento do tríptico “Mal Visto, Mal Dito” que a expressão estética da encenação atinge a plateia com o corte laminar, pela trágica dramaticidade da exposição de uma velha mulher às portas de seu epílogo existencial. No delírio da ancestralidade de suas lembranças de vida, se confronta com ela mesma, numa árdua tentativa de encontrar uma identidade pessoal e um significado na finitude existencial.

Com uma carga menos densa de experimentalismo linguístico, mas mantendo a nuance cáustica dos monólogos precedentes, em destaque a impostação e a extensão vocal, a carga emotiva da performance e a hierática e solene presença cênica de uma atriz do porte de Nathalia Timberg.

Numa envolvência carismática palco plateia esta representação feminina em formato tríptico, barrocamente arquitetado, acaba tornando luminoso seu proposital hermetismo, explícito nas próprias palavras de Samuel Beckett: “Nada tenho para dizer, mas somente eu sei como dizer isto”.

                                         Wagner Corrêa de Araújo


TRÍPTICO SAMUEL BECKETT. Setembro 2014. Foto Renato Ogata.

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