TRIPAS: SOB UMA TEATRALIDADE DO INCOMODO E DA PROVOCAÇÃO


FOTO/LOURENÇO MONTE

“O teatro, como a peste, é feito à imagem dessa carnificina, dessa essencial separação. Desenreda conflitos, libera forças, desencadeia possibilidades e se estas forças são negras, a culpa não é da peste ou do  teatro mas da vida”.

Incisiva reflexão de A. Artaud que pode ser um referencial especular para um cruel recorte psicofísico que marcou a trajetória existencial do ator e diretor Ricardo Kosovski. E que, num pacto de poesia e pânico com seu filho, também ator e dramaturgo, Pedro Kosovski, conduziu ao dilaceramento vivencial da trama dramatúrgica de Tripas.

Impactante sensorialmente, equilibrando-se, à beira do abismo , entre a vida e a morte, com seu relato nu e cru sobre a tragicidade de um instante feroz do destino que , malgrado os reveses,  tornou mais implícitos os liames de sangue e arte que unem estes dois seres parentais.

Na perigosa fragilidade de um estado letárgico provocado por um mal físico – uma crise violenta de diverticulite - que obriga a uma longa internação hospitalar do Kosovski pai .

Onde, entre o difícil estágio de dores com arriscada septicemia e potencializada insegurança mental, acontece finalmente o milagre da recuperação. E que conduz a um acordo paternal/filial para uma viagem às raízes familiares em Israel, mais precisamente no enfrentamento dos litigiosos limites territoriais árabes/judaicos no Golfo de Ácaba.

Depois da árdua jornada de guerra contra a  corporeidade doente, é este mergulho na irracionalidade dos conflitos étnicos/políticos que acende a chama, num ritual de celebração de volta à vida. Na ideia textual de um teatro alquímico de acerto de contas, dividido entre autoria/comando diretor de Pedro Kosovski, e voltado para interpretação solo de Ricardo Kosovski.

Mesmo que, na representação desta episódica retomada de um amargo gosto da vida, reabrisse as feridas puxando o fio intestinal, moldado em sangue e fezes, desnudando simultaneamente, em palavra e fisicalidade, um inusitado espetáculo de provocante incomodo – Tripas.

Capaz de provocar náusea, com a literalidade visual e olfativa de entranhas metaforizadas,  pela manipulação direta, real e sem disfarces das membranas pegajosas e repelentes de um polvo.

Como por  assustar pela rudeza orgiástica do gestual performático(Toni Rodrigues) e pela vocalização de nervosa tessitura, na instintiva e enérgica autenticidade confessional assumida no protagonismo do ator(Ricardo Kosovski).

Contando ainda com o minimalismo funcional da concepção cenográfica(Lídia Kosovski), sob luzes  entre sombras( Renato Machado) e incisivos acordes ao vivo (Pedro Nêgo) da trilha incidental de Felipe Storino.

Este teatro da vida tão próximo da crueldade artaudiana , remetendo também aos transes do descompasso cênico/corporal de Tadeusz Kantor, alcança contumaz veracidade no contraponto critico assumido, simultaneamente, por sua enérgica direção e sua irretocável performance.

Mas enquanto a muitos há de parecerem  irracionais os avanços formalistas destas Tripas, a outros certamente há de tornar cúmplices por seu simbiótico arrojo estético/curativo.

Através do mistificante encontro pai/filho, ator/diretor, no onirismo erotizado e na pureza incestuosa de um beijo de afetivo protesto capaz, assim, de fazer reflexionar provocando lágrimas.

                                            Wagner Corrêa de Araújo

FOTO/BIDI BUJNOWSKI

TRIPAS está em cartaz no Teatro Poeirinha, de quinta a sábado, às 20h; domingo, às 19h. 60 minutos. Até 25 de fevereiro.

CLARICE EM DÚPLICE CENA : DEIXA-ME SER , DEIXO-TE SER


FOTO/ARQUIVO FAMILIAR

A complexa interiorização do universo de Clarice Lispector se manifesta no reinventar a presença dramatúrgica da escritora, dividindo o seu “estar só”, na visível  escuta de seu silêncio pelo  outro, além do palco. Este universo literário teatralizado vem deixando um precioso inventário estético e memorialístico.

Formatado, especialmente, em solilóquios/monólogos que vão, entre outras incursões, de Beth Goulart e Esther Jablonski a Rita Elmôr . Passando, ainda, por singularizadas visões, ora com pulsão sacro/ritualística por Eduardo Wotzik , ora lírico/poéticas por Delson Antunes.  

Com vitoriosa  trajetória tanto no aplauso do público como na cúmplice adesão da crítica, duas destas encenações estão de volta aos palcos cariocas.


I - CLARICE LISPECTOR E EU - O MUNDO NÃO É CHATO

FOTO/RUBENS CAMELO

Quando, há dezoito anos, Rita Elmôr surpreendeu a cena carioca com sua envolvente busca de uma resposta ao metafísico questionar-se de Clarice – “Eu sou um mistério para mim” – ficou marcada ainda pela incrível similaridade física com a escritora.

E, assim, depois da performance primeira de 1998 em “Que Mistérios Tem Clarice” , ela retoma sua exteriorização das vivências de uma representação, entre  vida e  mito,  verdade e performance, na desafiante fisicalidade de uma metafórica escrita.

Desta vez, em “Clarice Lispector & Eu – O Mundo Não É Chato”, Rita Elmôr transcende a fórmula inicial, misturando fragmentos da escritora com suas próprias reflexões, num espetáculo revelador em sua sobriedade e despretensão.

A atriz , no  uso inteligente de sua semelhança visual com Clarice, faz uma entrega absoluta a esta personificação. Em linha dramática quase pirandelliana, na sua conduta  de mistura de identidade com a personagem assumida.

É como se Rita/Clarice fossem uma só, neste fluxo de frases entre a dramaturgia autoral e o referencial literário,  entre o “deixo-te ser  e o “deixa-me ser “. E é esta troca, de poéticos subentendidos, que faz irradiar a magia da proposta.

A prevalência do sensorial tem seu alcance ampliado nos achados singulares das fotos  de Clarice/ Rita projetadas ao fundo e no bom gosto do figurino (Mel Akerman). Além do minimalismo da composição cenográfica e dos efeitos visuais, entre sombras e luzes (na dupla concepção de Paulo Denizot).

Onde um núcleo de  trama simples, concisa e consistente, conduzida pela direção artesanal  de  Rubens Camelo, tem no sutil contraponto da intérprete e da personagem, um tom confessional  pontuado entre o lírico humor e a verdade interior.

Capaz, enfim, de estabelecer carisma e empatia com o público numa das mais sensíveis gramáticas cênicas da atual temporada.


II - MISSA PARA CLARICE-UM ESPETÁCULO SOBRE O HOMEM E SEU DEUS

FOTO/RICARDO BRAJTERMAN

Os auto sacramentais e os mistérios , inicializados com as passagens evangélicas  teatralizadas da vida de Cristo , ultrapassaram, especialmente a partir do período barroco,  a sua mera singularidade de tradição religiosa medieval .
Sua simbologia alcança,  assim , uma composição dramática cerimonial de estrutura alegórica, entre o sacro e o profano . Para celebrar o mundo, a natureza, os sentimentos humanos, além de todos os dogmas e rituais religiosos, numa  transcendente espiritualidade universal.

E é este o grande lance de dados da concepção dramatúrgica de  Eduardo Wotzik em Missa Para Clarice – Um Espetáculo Sobre o Homem e Seu Deus. Ao desnudar a profundeza filosófica e a subjetividade psicológica dos conceitos abstratos da obra de Clarice Lispector,  através de uma extasiante liturgia cênica.

Será que Deus sabe que existe?”. Esta metafórica imagem é um enunciado dos segredos que marcam Clarice e seu Deus. E já no prólogo do missal, a trajetória da santificação é induzida pela mensagem amorosa  da Macabéa , a protagonista/mártir  de A Hora da Estrela: “Na  pobreza do corpo e do espírito eu toco na santidade, eu que quero sentir o sopro do meu além”.

O celebrante Eduardo  Wotzik numa expressiva entrega sacrificial,com sua "batina” atemporal de pregador, conduz o ritual “católico”. Instaurando, como um arauto , de Elêusis ou de Cristo, a cerimonia dos mistérios e milagres de Clarice.

Neste seu desempenho de ator/diretor/mensageiro do divino , manifestado na contemplação da palavra interior , ele conclama a participação da plateia de  fiéis nas preces da bem aventurada Lispector –“Eu só rezo porque palavras me sustentam.  Eu só rezo porque a palavra me maravilha”.

As atrizes Cristina Rudolph e Natally  do Ó , como acólitos do diácono protagonista, em suas breves intervenções, estabelecem um imanente clima dialético com os espectadores/devotos das benditas espiritualidades da escritora.

O intensivo impulso criativo da direção de arte(Analu Prestes) acentua cada instante cenográfico desta envolvente epifania da palavra literária e do gesto teatral sacralizados.

Onde o  desenho das luzes (Fernanda e Tiago Mantovani) alcança um  maneirismo barroquizante, entre brumas e sombras de refletores e velas.E os acordes melancólicos da elegíaca Sinfonia n. 3 , de Gorécki, com seus cantos de dor, conduzem  ao clima místico idealizado.

Capaz, enfim, de estabelecer um ritual coletivo palco/plateia (sacro>espiritual>profano>físico) de  comunhão estética e louvação, entre as parábolas e  prédicas de Clarice:

Meu Deus, me dê a coragem de viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites, todos vazios de Tua presença... Faça com que eu seja a Tua amante humilde, entrelaçada a Ti em êxtase... Receba em teus braços o meu pecado de pensar”.

                                    Wagner Corrêa de Araújo



CLARICE LISPECTOR E EU - O MUNDO NÃO É CHATO está em cartaz no Teatro Maison de France,de sexta a domingo, às 19h30m;domingo,às 19h. 60 minutos. Até 11 de março.

MISSA PARA CLARICE–UM ESPETÁCULO SOBRE O HOMEM E SEU DEUS está em cartaz no Teatro Laura Alvim/Ipanema, sexta e sábado, às 20h;domingo, às 19h30m. 80 minutos. Até 18 de março.

GRANDE SERTÃO-VEREDAS: DECIFRANDO A PROSA DO ROSA


FOTOS/ROBERTO PONTES

Grande Sertão: Veredas
, de João Guimarães Rosa e Ulysses, de James Joyce, desafio e provocação em duas obras instigantes da literatura do século XX. Da Irlanda de Joyce e do Brasil do Rosa da prosa, a decifração cênica de um imponente  inventário estético/linguístico esvaziou-se na versão fílmica de cada uma em seus respectivos países.

E, mesmo com uma cuidadosa adaptação para a televisão embora sujeita aos ditames estilísticos deste veículo, só agora, enfim no plano da criação teatral , o convite à travessia dramatúrgica das Veredas rosianas alcança um absoluto contraponto crítico por obra e graça do comando diretorial de Bia Lessa.

Que em seu multi/conceitual artístico, numa trajetória que leva ao referencial de assumir o “quero decifrar as coisas que são importantes”, soube como bem  preservar o signo estético deste precioso legado literário/ficcional, mantendo ao mesmo tempo seu habitual teor investigativo no exercício do ofício diretor.

Seja através de um processo de instalação visual/plástica numa arena/gaiola com seus bonecos de feltro (Fernando Mello da Costa), interativa na cotidiana visitação diurna, ou pela quarta parede circundante na diária performance dramatúrgica noturna. No presencial do elenco em moto continuo na anti-divisão em cenas, lembrando a inexistência da divisão em  capítulos também na trama romanesca.

Interiorizando a relação livro/palco/plateia em inteligente favorecimento intimista  de uma sequencial coreografia das palavras ecoando nas mentes de cada ouvinte/espectador, via fones individuais(na dúplice mixagem de Fernando Hena/Daniel Turini).

Enriquecendo esta sucessiva envolvência de neologismos, regionalismos e arcaísmos sintáticos e fonéticos, nas vozes atorais, com sonoridades ambientalistas (bichos, pássaros, águas, ventos) , junto aos evocativos acordes  musicais pela trilha de Egberto Gismonti.

Aqui, “o sertão está dentro da gente”, sensorial ou metafisico, na afetividade sublimada do Riobaldo(Caio Blat), valente jagunço masculino, por um misterioso camarada Diadorim(Luiza Lemmertz), em sua feminilidade oculta sob  vestes de brava jagunçagem. Mas “este mundo é muito misturado”, quando, ainda, prevalecem os perigos de ódio no enfrentamento do inimigo Hermógenes( Leon Goes).

Evitando o apelo a uma cenografia que remeta ao pitoresco e ao localismo paisagístico do sertão das Gerais, Bia Lessa vazou o desenho de luz e privilegiou  o acionamento dramático pelo  ritmo coletivo de uma enérgica gestualidade.

Mimetizando atores personificados entre serem humanos, animais ou minerais, sem nunca deixar perder o dimensionamento psicológico dos personagens. Sugerido assim, auditivamente, a partir da textualidade ou também replicado na fisicalidade sensitiva. Acentuado por nus frontais ou pela neutralidade dos figurinos padronizados em tons negros/ocres (Sylvie Leblanc).

Nas episódicas possibilidades solistas, apesar das diversidades de maturação profissional, há coesão e entrega na coadjuvância grupal de Balbino de Paula, Clara Lessa, Daniel Passi, Elias de Castro, Leonardo Miggiorin, Leon Goes, Lucas Oranmian. E de maiores chances para as atrizes Luiza Lemmertz, configurando mais platonicamente Diadorim, e Luisa Arraes , especialmente no visceral ato de erotizada materialidade carnal ao lado de Riobaldo(Caio Blat).

Em pulsão alquímica, é Caio Blat que exorbita potencialidade tanto na vocalização de um complexo linguajar de sintaxe prosódico/semântica, como na expressão do convicto comportamental de um personagem marcado pela ambiguidade de elementos literários, antropológicos  e míticos :

O que não é Deus, é estado do demônio. Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para haver – a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo”.
                                           
                                            Wagner Corrêa de Araújo



GRANDE SERTÃO: VEREDAS está em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil- rotunda/Centro/RJ, de quarta a domingo, às 21h. 140 minutos. Até 31 de março.

MELHORES E PIORES DE 2017 PELO BLOG DE ÓPERA & BALLET




MELHORES E PIORES DE 2017 PELO BLOG DE ÓPERA & BALLET: PIOR COREOGRAFIA, MOMIX FOREVER.

fevereiro 14, 2018




MOMIX FOREVER

“ Com a exacerbação de seus efeitos visuais, sua iluminação psicodélica , suas recorrências aos contrastes claro/escuros entre sombras e seus figurinos aquarelados, parte considerável do gestual e da fisicalidade dos bailarinos/atletas é eclipsada por estes elementos.

E , depois de habituais apresentações nos palcos brasileiros, este repertório tradicional tem uma prevalente nuance de déjà vu e até de um certo fastio.

Para quem vem acompanhando esta trajetória poucas são as criações que ainda são capazes de surpreender, inclusive pelo teor opcional por um programa de episódicas coreografias que acabam funcionando sequencialmente mais num clima de um grande vídeo clipe.”

Wagner Corrêa de Araújo /Blog de Ópera & Ballet.


MELHORES E PIORES DE 2017 PELO BLOG DE ÓPERA & BALLET: MELHOR ESPETÁCULO DE DANÇA, NEDERLANDS DANS THEATER 2.

fevereiro 11, 2018



NDT 2 (NEDERLANDS DANS THEATER 2)

“Eles não atuam como meros iniciantes, pois apesar da pouca idade impressionam, sobretudo, pela maturidade técnica, graças a um exigente treinamento. E pela enérgica graciosidade virtuosística em criações idealizadas para a maior revelação destes talentos jovens.

Em suas inúmeras turnês, o repertório mostra uma perceptível conexão alterativa entre obras narrativas ou simplesmente abstratas, mas sempre na prevalência de abordagens contemporâneas com espiritualidade juvenil. 

Desde o gestual espontâneo, instintivo e extremamente comunicativo para as plateias de quaisquer idades, como na sua entrega à representação (coreo)dramática”.

Wagner Corrêa de Araújo / Blog de Ópera & Ballet


MELHORES E PIORES DE 2017 PELO BLOG DE ÓPERA & BALLET: MELHOR COREÓGRAFO, RODRIGO PEDERNEIRAS.

fevereiro 09, 2018



RODRIGO PEDERNEIRAS/GRUPO CORPO/GIRA

“Transubstanciado no comando,aqui, de encantamento religioso/popular, com sutil visagismo sanguíneo entre o pescoço e a carne de peitorais desnudados.”Metá Metá”, macho e fêmea unificados nos circuitos umbandistas do Gira, em território candomblé deste metafórico espaço cênico de descendimento dos orixás.

Neste reencontro do gestual/signo na trajetória do Corpo, de volta os remelexos e requebros de quadril, acrescidos, agora, dos agachamentos na desconstrução/descontração da verticalidade postural em tensas dobraduras/elipses/giros propícios ao ato de receber as “entidades”.

Fazendo de Gira(criação coreográfica de Rodrigo Pederneiras), sem artifícios virtuosísticos e sem concessões folcloristas, um carismático ritual coletivo de arte/vida, com tal apelo de sintonização palco-plateia que, a qualquer momento, o próximo incorporado pode ser você.."

Wagner Corrêa de Araújo/ Blog de Ópera & Ballet.


MELHORES E PIORES DE 2017 PELO BLOG DE ÓPERA & BALLET: PIOR ESPETÁCULO DE DANÇA DO ANO, A CRISE NO BALÉ DO THEATRO MUNICIPAL/RJ.

janeiro 29, 2018


Em ano dramático, desanimador e sem perspectivas, a mais tradicional companhia clássica do país – o Balé do Theatro Municipal do RJ – pela primeira vez em sua história , diante da insensatez política na brusca mudança da direção do TM, agravada com a crise econômica com insistente atrasos salariais, não apresentou nenhuma obra significativa, tornando-se um símbolo do mais triste e do pior momento coreográfico brasileiro.

Tendo, para sobreviver artisticamente, se limitado a duas performances incidentais, em patético clima de apelo e de luta ao lado dos outros corpos estáveis do TM, nos espetáculos Carmina Burana , em formato de concerto cênico, e na transposição, entre muitos equívocos e poucos acertos, da criação dramatúrgica de Peter Brook , a partir de Merimée/Bizet – La Tragédie de Carmen.

“Sem grandes audácias inventivas, mas reafirmando sempre o luminoso rompante, entre tantos reveses atuais, de um bem dosado amadurecimento dos seus intérpretes.Com perceptível visibilidade nas atuações irrepreensíveis, em técnica e emoção, da dupla Cláudia Mota e Cícero Gomes.

Na sincera transmutação do desalento destes artistas em viral resistência, fazendo disto o grande mote técnico/artístico desta Carmina Burana de dimensionamento psicológico mitificado em instante de corajoso protesto, num grito de guerra - diante da roda da fortuna: aqui estamos, aqui queremos ficar...”

Wagner Corrêa de Araújo  / Blog de Ópera & Ballet


PRESSA: SOB CENOGRÁFICA CORRIDA ANTI REVESES


FOTOS/GUGA MELGAR

Pressa - mal do século ? Que hóspede  presencial é este no imaginário cotidiano? De precipitação voraz na sua ansiedade por saídas quaisquer : hipócritas, amorais, perversas, criminosas. Marginalizando corações e mentes  em cadência vertical , legitimadas  nos meandros oficiais e absorvidas, via reflexos especulares , em nossas posturas comportamentais.

Capazes de fazer , na insanidade pela solução final, o tímido esquecer o medo e o depressivo a angústia. “ Para ficar numa boa” -  ainda que a pressa, diz um ditado, faça comer o cru e o quente. 

E são eles mesmo os que se tornam  personagens nesta Pressa toda,onde o dramaturgo paulista Octávio Martins descortina, desvela, disseca,  provocando em processo cúmplice, palco/plateia, ao expor tipos encontrados a qualquer dia, em qualquer esquina.

A esposa aflita (Filomena Mancuzo), o marido calmo (Diogo Camargos), a garota grávida (Mariah Viamonte), o rapaz preocupado(Rafael Coimbra), o rapaz feliz(Thiago Marinho), o irmão doente(João Fonseca),a velha (Thais Portinho), mais  os dois maridos (Alexandre Pinheiro, Roberto Lobo) e as duas mulheres (Paula Sandroni, Rafaela Amado).

Conduzidos, aqui, artesanalmente em dúplice comando direcional , pela habilidade de João Fonseca e por um novo oficio para o cenógrafo Nello Marreze. Com  preciosos apoios na indumentária dia-a-dia (Victor Guedes), no desenho de luzes ora focais ora vazadas( Luiz Paulo Nenen/Tiago Mantovani) e nas incidências sonoro/musicais(por João Fonseca , dublê de sonoplasta).

Numa retomada do reconhecido lastro inventivo da CiaOs Fodidos Privilegiados, no encontro diversificado de gerações atorais, sabendo como dosar a corajosa  aventura de performances iniciantes à técnica de interpretações mais amadurecidas.

Em  intrigantes/instigantes intervenções, tanto pela fisicalidade, ora frágil, ora nervosa, ora feroz, como por seu controverso dimensionamento psicológico, variando no serem terríveis ou ingênuos, entre amenidades, intrigas  e irracionalidades, numa encenação direta e seca, às vezes rompante ou incomoda,  na sua poesia do pânico.

Na fragmentária trama, em que as narrativas dos casos da Pressa nervosa se cruzam numa simultaneidade não linear, favorecida pelo ritmo do vai e vem de onze atores e pela mutabilidade dos efeitos luminares, ressaltando as suas  diferenciais ocupações do espaço cênico.

Mas, em contraponto, resvalando em ocasionais fugas de uma idealizada formatação estilística da performance  (marca registrada da Fodidos) , fazendo com que o teor polemista da textualidade e do arrojo da proposta dramatúrgica não se expandam como o esperado e, na sua integralidade, em cena.

O que, de forma alguma, limita o alcance de um teatro espontâneo, onde  a liberdade instintiva, a irreverência e o despojamento estão sintonizados com os rumos da tematização política e antenados esteticamente na contemporaneidade.

                                                    Wagner Corrêa de Araújo



PRESSA está em cartaz no Teatro Gláucio Gil/Copacabana, de sexta a segunda, às 20h. 70 minutos . Até 19 de fevereiro.                                                                        

O TEMPO NÃO DÁ TEMPO: ENTRE A DANÇA/TEATRO E O TEATRO FÍSICO



FOTOS/RENATO MANGOLIN

No final dos anos 80 tive a chance de realizar uma longa entrevista com a coreógrafa Susanne Linke, uma das mentoras do movimento de Dança/Teatro e integrante/bailarina de criações da cia de Pina Bausch, no “tanzstudio”da Folkwang em Essen, a mais importante escola alemã de dança contemporânea.

Naquele momento já se definia, ainda em meio a controvérsias, o conceitual estético do inovador encontro de duas linguagens artísticas , até então, resistentemente compartimentadas. Demolindo, assim, a quarta parede entre a fisicalidade coreográfica e a textualidade dramatúrgica, na mais livre e pura integração do movimento e das palavras.

Quando se usam temas do teatro, é necessário saber que  tratamento dar em sua transposição para o movimento coreográfico. Passei pelas duas formas e sei dos riscos que esta tendência representa, pois há sempre a possibilidade do teatro prevalecer. Pode-se ficar com as duas formas mas desde que se  conheçam bem os limites de cada uma”, afirmou Susanne Linke em seu depoimento.

Este referencial vem a propósito da mais recente incursão cênica de Duda Maia – “O Tempo Não Dá Tempo” que ela denomina de teatro-dança, invertendo a original priorização vocabular coreográfica(dança/teatro),  na  sua classificação de identidade e gênero estético, tendo em vista que a maioria de seu elenco de “atores/bailarinos” tem lastro nitidamente dramatúrgico.

Com exceção da própria, com sua larga experiência didática  e artística em dança contemporânea e nas expressões da corporeidade e da direção de movimento cenográfico. E , é  claro, na participação especial de Angel Vianna , em forma de tributo aos seus noventa anos, com seu  simbiótico papel inventor/interventor do gestual cotidiano da dança para o teatro.

Duda Maia é um exemplo impar de trajetória singular na duplicidade deste universo dramático/coreográfico, capaz de irrestrita representatividade na experimentação do  gestual, transubstanciada aqui como uma performance física substitutiva da palavra teatralizada.

Se ela surpreendeu, pela pulsão criativa gestual/expressiva,  na concepção diretorial tanto no entremeio teatro/música do consagrado  Auê como do não menos premiado musical infanto-juvenil “A Gaiola”, agora sua perspectiva investigativa tem necessária pressa pois O Tempo Não Tem Tempo.

Para isto, concorre o deslocamento em perpetual motion  da narrativa dramatúrgica concebida coletivamente (Duda Maia, Gregorio Duvivier e Gonçalo M. Tavares ) na extensão de um sintonizado elenco/construtor (Ciro Sales, Juliana Linhares ,Marina Viana,Oscar Saraiva), enriquecido pela força presencial/simbólica de Angel Vianna.

Todos direcionados na unidade interpretativa desta arquitetura de corpos em movimento, de contínua intensidade , ora na envolvência explícita dos apelos sensuais (na visceralidade lírico/erótica do duo de Ciro Sales/Juliana Linhares),  ora nas ressonâncias dramático/incisivas de emoções interiorizadas(no cativante solo muralista de Marina Vianna).

Aflorando imageticamente na direção de arte(Theodoro Cochrane) com o precioso auxilio dos recortes luminares (Renato Machado), sob evocativas intervenções sonoro/musicais( Ricco Viana). Na cumplicidade interativa de um espetáculo de provocação contra o imobilismo pela convocação da plateia ao comportamental itinerante.

Desde o inventário nostálgico/poético da infância nas nuances lúdico/emotivas dos cânticos de roda (na cena de palco com Angel Viana e o quarteto de atores), às ressonâncias psico/físicas das vivencias urbanas e das viagens siderais/mentais  de cada um de nós.

No delineamento de um espaço cênico/dramatúrgico do movimento sensorial reflexionando o processo da passagem temporal, entre o ontem e o hoje, investindo no descortino de novos caminhos da dança/ teatro ao teatro físico.

                                             Wagner Corrêa de Araújo





O TEMPO NÃO DÁ TEMPO está em cartaz no Oi Futuro/Flamengo, de quinta a domingo, às 20h. 75 minutos. Até 25 de fevereiro.

BOCA DE OURO: DELÍRIO E ALEGORIA


FOTOS/ JOÃO CALDAS

Todo o meu teatro tem a marca de minha passagem pela reportagem policial.  E  tanto mais que foi aí que eu conheci o cadáver, porque os defuntos que eu tinha conhecido, havia uma certa distância entre mim e eles. Eu olhava, mas não me tornava íntimo. Agora, o repórter policial , este sim, torna-se íntimo do cadáver e da morte”.

Em  Boca de Ouro, mais uma vez, esta assertiva prevalece, pois aqui como no Beijo no Asfalto, o ponto de partida é uma reportagem policial. Havendo ainda o referencial do cadáver vilipendiado e despojado do sonho post mortem que o alimentara em vida – a glorificação cerimonial fúnebre como vingança ao desprezo de seus contemporâneos.

Tanto a Zulmira (A Falecida) como o bicheiro nominado como  Boca de Ouro sonham com enterros de tal prepotência luxuriante capaz de causar inveja tanto nas vizinhas  suburbanas da primeira como nos  rivais de oficio criminoso do mandatário cafajeste dos morros.

Aqui, na concepção direcional/cenográfica/indumentária  de Gabriel Villela, com teor vampiresco/sanguíneo, na personificação de um Drácula de Madureira ao substituir, por acintoso exibicionismo de poder, sua arcada dentária por uma prótese de ouro.

Onde um dos mais míticos personagens do inventário dramatúrgico de Nélson Rodrigues, com sua trama se desenvolvendo, propìciamente,  na permissividade de seu psicologismo autoral por um prevalente sotaque de delírio, é conduzido  a alegorias carnavalescas,  alterativamente  entre uma redação de um jornal sensacionalista e uma gafieira.

Nos flashbacks que reconstituem sua trajetória marginal, entre amores e crimes, nos relatos oponentes de dona Guigui(Lavínia Pannunzio), ex-amante do Boca de Ouro (Malvino Salvador), provocados pelo repórter Caveirinha(Chico Carvalho). Envolvendo, em versões contraditórias, os amasiados Celeste(Mel Lisboa) e Leleco (Claudio Fontana). 

E é , exatamente, através do não rigorismo realista que os figurinos se inspiram, ricamente emoldurados por sedas,cetins, purpurinas e dourados, na imaginária carnavalesca com sutis referenciais à simbologia farsesca das personificações teatrais, ressaltados por um desenho de luzes( Wagner Freire) entre sombras.

Ampliada por um ostensivo visagismo(Claudinei Hidalgo) favorável à mascaração e por um ironizado  gestualismo melodramático( Rosely Fiorelli), capaz de atender a uma trilha nostálgica de sambas-canção, às vezes um pouco  reiterativa, para piano (Jonathan Harold) e voz(Mariana Elizabetsky),de Dolores Duran a João Bosco, passando por Herivelto e Lupicínio Rodrigues.

Numa montagem em que a direção usa e abusa dos efeitos visuais, da exacerbação de cores dos figurinos entre meios tons luminares, com  uma grandiloquência barroquista que se potencializa, embora criticamente,  na dramaticidade novelesca da fisicalidade. 

Ainda que o protagonismo titular( Malvino Salvador) seja ofuscado,  na  menor visceralidade de sua caracterização do escárnio de um estereótipo da criminalidade malandra anos 50/60.

Mais convictas e convincentes na idealização autoral e da textualidade original acabam sendo  as personagens assumidas , com vigorosa entrega, por Claudio Fontana(Leleco) e Chico Carvalho (Caveirinha).

Enquanto  o delineamento dos contornos  de compreensão dos papéis femininos alcança intensidade nas flutuações emocionais de Lavínia Pannunzio( Guigui).

E materializa-se nas nuances sensoriais, de  irradiante singularidade , que Mel Lisboa confere a Celeste fazendo sua personagem alçar o voo mais alto desta representação.

Conduzida, é claro, em sua integralidade conceitual – estético/dramatúrgica - na habitualidade da energia inventiva e da autoridade cênica de Gabriel Villela.

                                               Wagner Corrêa de Araújo


BOCA DE OURO está em cartaz no Teatro Sesc/Ginástico/Centro/RJ, sexta e sábado, às 19h; domingo às 18h. 110 minutos. Até 25 de fevereiro.

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