ESTUDO PARA MISSA PARA CLARICE :LITURGIA DA PALAVRA LITERÁRIA

FOTOS/RICARDO BRAJTERMAN
Os auto sacramentais e os mistérios , inicializados com as passagens evangélicas  teatralizadas da vida de Cristo , ultrapassaram, especialmente a partir do período barroco,  a sua mera singularidade de tradição religiosa medieval .

Sua simbologia alcança,  assim , uma composição dramática cerimonial de estrutura alegórica, entre o sacro e o profano . Para celebrar o mundo, a natureza, os sentimentos humanos, além de todos os dogmas e rituais religiosos, numa  transcendente espiritualidade universal.

E é este o grande lance de dados da concepção dramatúrgica de  Eduardo Wotzik em Estudo Para Missa Para Clarice – Um Espetáculo Sobre o Homem e Seu Deus. Ao desnudar a profundeza filosófica e a subjetividade psicológica dos conceitos abstratos da obra de Clarice Lispector,  através de uma extasiante liturgia cênica.

Será que Deus sabe que existe? “. Esta metafórica imagem é um enunciado dos segredos que marcam Clarice e seu Deus. E já no prólogo do missal, a trajetória da santificação é induzida pela mensagem amorosa  da Macabéa , a protagonista/mártir  de A Hora da Estrela:
Na  pobreza do corpo e do espírito eu toco na santidade, eu que quero sentir o sopro do meu além”.

O celebrante Eduardo  Wotzik numa expressiva entrega sacrificial,com sua "batina” atemporal de pregador, conduz o ritual “católico”. Instaurando, como um arauto , de Elêusis ou de Cristo, a cerimonia dos mistérios e milagres de Clarice.

Neste seu desempenho de ator/diretor/mensageiro do divino , manifestado na contemplação da palavra interior , ele conclama a participação da plateia de  fiéis nas preces da bem aventurada Lispector –“Eu só rezo porque palavras me sustentam.  Eu só rezo porque a palavra me maravilha”.

As atrizes Cristina Rudolph e Natally  do Ó , como acólitos do diácono protagonista, em suas breves intervenções, estabelecem um imanente  clima dialético com os espectadores/devotos das benditas espiritualidades da escritora.

O intensivo impulso criativo da direção de arte( Analu Prestes) acentua cada instante cenográfico desta envolvente  epifania da palavra literária e  do gesto teatral sacralizados.

Onde o  desenho das luzes (Fernanda e Tiago Mantovani) alcança um  maneirismo barroquizante, entre brumas e sombras de refletores e velas.

E os acordes melancólicos da elegíaca Sinfonia n. 3 , de Gorécki, com seus cantos de dor, conduzem  ao clima místico idealizado.

Capaz, enfim, de estabelecer um ritual coletivo  palco/plateia (sacro>espiritual>profano>físico)  de  comunhão  estética e louvação,  entre   as parábolas e  prédicas de Clarice:

Meu Deus, me dê a coragem de viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites, todos vazios de Tua presença... Faça com que eu seja a Tua amante humilde, entrelaçada a Ti em êxtase... Receba em teus braços o meu pecado de pensar”.

                                          WAGNER CORRÊA DE ARAÚJO


ESTUDO PARA MISSA PARA CLARICE está em cartaz no Teatro III do Centro Cultural Banco do Brasil, quinta a domingo, às 19h30m. 80 minutos. Até 28 de fevereiro.
NOVA TEMPORADA: Teatro Gláucio Gil, Copacabana, sexta a segunda, às 20h. Até 2 de maio.

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