ABSOLVIÇÃO : TEATRO VERDADE SOB A ANGUSTIANTE E PERTURBADORA SOMBRA DE UM ANJO VINGADOR


Absolvição. Owen O'Neil / Dramaturgia. Daniel Herz/Direção Concepcional. Andriu Freitas/Performance. Março/2025. Victor Hugo Cecatto/Fotos.


O cineasta, ator e dramaturgo irlandês Owen O’Neill ficou inicialmente conhecido por seus inúmeros stand-ups, sob uma pontuação irônica de humor negro que ele transpôs também, num crescendo mordaz, para seus experimentos teatrais e cinéfilos. Ideário que este acabou levando à culminância em sua mais polêmica criação cênica - a peça Absolvição.  

Conturbado pelo absoluto conservadorismo da igreja católica, especialmente nas comunidades paroquianas de seu país, capaz de silenciar diante da permissividade abusiva quanto a crianças inocentes por parte tanto de clérigos algozes, como da postura de pais insensatos que se colocam ao lado destes, chegando a acreditar nestes atos como um processo de remissão dos pecados.

No dimensionamento de uma temática que se constitui num dos maiores desafios que afeta tanto ao catolicismo quanto à maioria das igrejas evangélicas, estas últimas com a justificativa, em outros termos, de expulsão corporal dos demônios e, ambas, escondendo-se por trás de uma sagaz privacidade “sacramental e confessional” de alguns padres e pastores.  

Até que se ouçam os alarmes denunciantes seja da parte  de vítimas corajosas assumindo este papel em dúplice confronto como testemunhas ou juízes ou, quem sabe, na missão de um anjo vingador na intenção de fazer justiça própria à causa que lhes fez calar o grito, enquanto sofriam cruéis assédios, na pureza e na incapacidade de avaliar o certo e o errado em fases iniciais da infância.


Absolvição. Owen O'Neil / Dramaturgia. Daniel Herz/Direção Concepcional. Andriu Freitas/Performance. Março/2025. Victor Hugo Cecatto/Fotos.


O que o monólogo Absolvição, de Owen O’Neill, faz na intensidade universalista da primorosa tradução de Diego Tesa, e na correspondente performance irreprimível de um jovem ator (Andriu Freitas), sempre surpreendente e revelador,  ao convergir numa direção concepcional avassaladora (Daniel Herz) com subliminar sotaque “artaudiano”, imprimindo à peça um clima psicofísico de assombroso impacto.

Colocando o ator e  espectadores na ambiência mental de uma espada suspensa sobre suas cabeças, diante dos relatos sádicos, plenos de sangue e vísceras, por um protagonista sem identificação nominal. Mostrando os assassinatos sequenciais de clérigos que ele tortura e mata consciente da culpa de cada um deles como pedófilos.

O que é vislumbrado em minimalista concepção cenográfica e indumentária de diferencial plasticidade (em dúplice criação de Wanderley Gomes), ora sugerindo o gradeamento artesanal de um confessionário, ora a imaginária cela prisional de um serial killer, descalço e com apenas um short e uma camiseta.

Onde, sombras e luzes discricionárias (Aurélio De Simoni), ressaltam a original presença de cadeiras antigas, com assentos dilapidados pelo tempo, servindo como inusitados elementos cênicos para emoldurar as ações macabras do personagem protagonista.

Possuído, ali, de um ódio insano, sanguinário e homicida no ímpeto de precipitar nas purgações infernais, a falsa sacralidade daqueles violentadores da castidade pueril de suas pequeninas vítimas, sem distinção entre meninos ou meninas.

O admirável empenho performático do ascendente  talento de Andriu Freitas provocando, sob folego ininterrupto, o suspense de um thriller na tensa plateia, da energizada pulsão da sua corporeidade muscular a uma angustiante expressão facial, de seu olhar questionador à convicta entrega à textualidade dramatúrgica.

Acompanhada de soturnas sonoridades, no entremeio de breves acordes musicais (Pedro Araújo), a narrativa vai induzindo a inesperadas mutações,  entre os prós e contras, o certo e o errado, no repúdio ou na aceitação das enigmáticas dialetações de um personagem.

Assassino ou vítima, padre arrependido de suas vilanias ou talvez uma daquelas crianças tornada adulto, anjo exterminador ou um emissário divino? Na complementação dos sessenta e cinco  minutos, passo a passo, prendendo sensorialmente a atenção do público, para o que der e vier,  até chegar à inimaginável reviravolta do epílogo... em espetáculo obrigatório para quem gosta de sólido teatro verdade sintonizado com a contemporaneidade...

 

                                             Wagner Corrêa de Araújo  


Absolvição está em cartaz no Espaço Abu/Copacabana sexta e sábado, 20h; domingo, às 19h, até 30 de março.

FLORESTA AMAZÔNICA / CIA DE BALLET DALAL ACHCAR : A SIMBÓLICA VOLTA AOS PALCOS DE UM MARCO DA DANÇA EM FORMAS BRASILEIRAS

Floresta Amazônica / Cia de Ballet Dalal Achcar. Dalal Achcar/Concepção Coreográfica/Direcional. Março/2025.Valério Silveira / Fotos.


Esta obra da coreógrafa e diretora Dalal Achcar foi uma criação precursora (1975), no universo da dança clássica-romântica em moldes brasileiros, como primeiro balé completo de extensão padronizada em dois atos, a abordar o exotismo ancestral indigenista e a riqueza ecológica daquela que é considerada o pulmão da terra - sendo titulado como Floresta Amazônica,  por Heitor Villa-Lobos, em 1958. 

Esta vigorosa suíte sinfônica tinha servido de ponto de partida para uma produção fílmica americana (Green Mansions) não tão bem sucedida como sua trilha sonora que acabou integrando seu legado musical, sendo uma de suas mais inspiradas composições. E foi precedida apenas por um poema sinfônico (Amazônia) de mesma autoria, direcionado à dança, mas sem alcançar a mesma repercussão. 

Em sua estreia, 1975, no Municipal carioca, na acurada versão de Dalal Achcar, esta criação teve parceria artística do Royal Ballet de Londres, através de um de seus mais renomados coreógrafos (Sir Frederik Ashton) na idealização do Grand Pas-De-Deux para a participação protagonista de uma dupla estelar - Margot Fonteyn e David Wall.

Dez anos depois alcança seu dimensionamento definitivo como um balé completo em dois atos, mantendo na íntegra a sua partitura original, então executada, em caráter memorável pelo maestro Henrique Morelembaum, frente à Orquestra Sinfônica e Coro do Theatro Municipal, com a soprano solista Maria Lúcia Godoy.

Que simbolismo tão especial esta sua recente volta ao Municipal, no entremeio de tantas datas tão significativas, 50 de sua estreia, 40 da marcante performance TMRJ, ao mesmo tempo, que faz lembrar o centenário de uma das maiores sopranos do País ainda entre nós -  Maria Lúcia Godoy.


Floresta Amazônica / Cia de Ballet Dalal Achcar. Dalal Achcar/Concepção Coreográfica/Direcional. Março/2025.Valério Silveira / Fotos.


Retomando seus elementos estéticos originais, sendo mantidas, as projeções de um dos mais celebrados figurinistas na época, o argentino José Varona  e a de um dos nomes absolutos da cenografia Hélio Eichbauer, sob  artesanal concepção coreográfica / direcional de Dalal Achcar. Não deixando de citar, nesta atual remontagem, os ambientais efeitos de luzes vazadas e focais por Felício Mafra.

Tudo como il faut para uma obra que devia ser do repertório do Balé do TM/RJ pela força de sua brasilidade, não só coreográfica, mas musical e temática, tão oportuna quando a complexidade florestal, o manancial aquático, vegetação e animais, sem esquecer dos remanescentes dos povos originários, continuam sob enfrentamento de invasões depredatórias.

“A minha única e insistente influência extramusical é diretamente da natureza, especialmente a de meu país”. Palavras precisas do próprio Villa-Lobos e que podem ser aplicadas a esta bela iniciativa artística na transposição coreográfica da Floresta Amazônica. Onde tudo flui para engrandecimento desta obra, desde o acerto da escolha da bela gravação à conexão de seus elementos indumentários / cenográficos. Além de um enredo a partir de narrativas lendárias com assumido sotaque folclorista na configuração da tipicidade de seus personagens.

Destacando o empenho de um vasto e bem ensaiado elenco jovem de bailarinos da Cia de Ballet Dalal Achcar, orientado pelo maître de ballet e remontador Eric Frederic, ressaltando convictas atuações em variados papeis solo ou em afinadas formações grupais. Numa similaridade performática com movimentos ora de puro gestualismo clássico, presencial nas estilosas pontas das bailarinas, ora tendendo para uma energizada corporeidade masculina nas danças características indígenas.

Alcançando uma culminância sensorial palco/plateia quando as duas luminosas canções (poemas de Dora Vasconcelos) dão vazão a uma representação glamourosa de técnica e lirismo à talentosa e virtuosística dupla ascendente de bailarinos  Gabriela Sisto, como a Deusa da Floresta, e de Fernando Mendonça no papel de Homem Branco.

Completando, assim, a exuberante reapresentação da Cia de Ballet Dalal Achcar de uma obra, mais próxima de um esmerado classicismo romântico, em meio a sutis tonalidades contemporâneas, abrindo com brilho qualitativo a Temporada Carioca de Dança 2025.

 

                                          Wagner Corrêa de Araújo

 

Floresta Amazônica / Cia de Ballet Dalal Achcar está em cartaz no TM/RJ, de 20 a 22 de março, às 20hs, até domingo, 23/02, às 16h.



MÚSICAS QUE FIZ EM SEU NOME : LAILA GARIN EM MAIS UM ACERTADO LANCE DE DADOS CÊNICOS / MUSICAIS


Músicas Que Fiz Em Seu Nome. Laila Garin / Tauã Delmiro / Dramaturgia. Gustavo Barchilon / Direção. Laila Garin / Performance. Março/2025. Van Brígido Fotografia.


“Na tentativa de não sofrer, terminamos optando por não sentir. Plastificamos nossa pele. Embalsamamos nossos afetos”. É a partir de uma das inspiradas reflexões poéticas e filosóficas de Viviane Mosé que Laila Garin, em dúplice imaginário com Tauã Delmiro, estruturou a narrativa dramatúrgica de seu diferencial monólogo cênico musical Músicas Que Fiz em Seu Nome.

Dando, assim, partida a um envolvente jogo teatral conduzido com a habitual artesania de um dos experts da nova geração do musical brasileiro – Gustavo Fiszman Barchilon. Onde a força qualitativa de tão acertadas parcerias acaba imprimindo à proposta perspectivas de uma maior trajetória, muito além desta sua instantânea temporada inicial.

Tendo ao seu lado uma equipe tecno/artística que confere a maior visibilidade artística a um despretensioso espetáculo que, apesar de ser dimensionado como um show cênico por seus idealizadores, pode ser classificado muito mais próximo de um teatro musical, mesmo sob sua formatação de monólogo.

Afinal, contar com a performance de uma protagonista solo como Laila Garin tão irradiante, seja por por seu presencial cênico seja por sua singularidade vocal, é fator incontestável para que esta atriz/cantora venha, como sempre sob um sotaque carismático, alcançando uma sólida trajetória Brasil afora, especialmente depois que se tornou emblemática sua personificação de Elis Regina nos palcos.


Músicas Que Fiz Em Seu Nome. Laila Garin / Tauã Delmiro / Dramaturgia. Gustavo Barchilon / Direção. Laila Garin / Performance. Março/2025. Van Brígido Fotografia.


A trama dramatúrgica (Laila Garin e Tauã Delmiro) conecta comédia e melodrama, partindo de curioso relato sobre procedimentos estéticos com “plastificações” faciais (das correções dematológicas a cuidados capilares), de sua personagem titular - uma noiva (Laila Garin) - às vésperas de seu casório, para se transformar, custe o que custar, numa nova Leide Milene. 

Isto tudo muito bem sugestionado por intermédio da vistosa indumentária (Fabio Namatame) própria a uma cerimônia nupcial, na tipicidade dos seus emblemas - da branqitude rendada do vestido longo extensiva ao véu, mais o indispensável buquê de rosas vermelhas.

Surgindo, de repente, como uma noiva radiante e portentosa em sua alta postura frontal, ampliada em seu figurino com sutil referencial de uma "babushka" russa gigante, preenchendo com bela plasticidade o espaço cenográfico (Natália Lana) sob funcionais variações luminares  (Maneco Quinderé) .

Onde a trilha sonora, com cerca de duas dezenas de canções, entremeando gêneros populares diversos, vai do repertório romântico assumidamente, por vezes, de tons brega / sentimentais, a alguns clássicos da MPB e até incluindo uma versão em português de Ne Me Quitte Pas. No primoroso tratamento musical de Tony Lucchesi (piano e regência) e seu naipe afinado de instrumentistas (Léo Bandeira na bateria, Thais Ferreira no cello, Jhony Maia, na guitarra e violão).

Para fazer esquecer as sofrências afetivas e as desilusões existenciais enfocadas, aqui, com uma humorística ironia entre o riso e as lamentações, há uma correspondência plena de instintiva espontaneidade, das marcações direcionais (Gustavo Barchilon) às expressões faciais e o gestualismo corporal de Laila Garin.

A atriz/cantora descortinando todos os contornos de sua personagem em irrepreensível e cativante representação vocal e textual, sob um coesivo nível qualitativo performático para este seu primeiro experimento autoral, sabendo como absorver plenamente a atenção do espectador.

Enquanto Gustavo Barchilon mostra, outra vez,  seu pleno domínio da gramática cênica do teatro musical, partindo agora de uma trama simples mas, que ele torna com sua reconhecida maturidade no gênero, de explícito alcance sensorial palco/plateia, com promissoras perspectivas na temporada 2025 ...


                                              Wagner Corrêa de Araújo

                                         

Músicas Que Fiz em Seu Nome está em cartaz no Teatro do Copacabana Palace, em curta temporada,  dias 11, 12, 19, 21, 25 e 27 de março; até os dias 01 e 02 de abril, sempre às 19hs.

SIDARTA : LIBERTÁRIA CONEXÃO DRAMATÚRGICA E EXISTENCIAL ENTRE A ESPIRITUALIDADE E A CORPOREIDADE

Sidarta. Angel Ferreira / Performance, Concepção Autoral e Direcional. Março/2025. Philipp Lavra / Fotos.


Publicado em 1922, sendo cronologicamente seu quinto romance, Sidarta foi uma das duas  obras fundamentais, ao lado de O Lobo da Estepe, para a concessão do Prêmio Nobel de Literatura a Hermann Hesse 24 anos depois de sua publicação. Embora parcela significativa da crítica literária considere Demian, 1919, como sua proposta ficcional mais avançada e inventiva.

E é a partir de uma livre adaptação, em formato de monólogo, que o ator Angel Ferreira faz sua primeira incursão num espetáculo solo, concebido, dirigido e interpretado por ele e, agora, alcançando depois de instantâneas apresentações, uma mais longa e significativa temporada.     

O fascínio exercido por esta narrativa, além de inspirar gerações por seu apelo ascético e filosófico, conclamando pela paz interior e pela busca do sentido da trajetória existencial, levou-a por vezes às telas sendo mais conhecida a versão de Conrad Rooks, 1972, e nos palcos coreográficos, a adaptação de Angelin Preljocaj, em 2010, para o Balé da Ópera de Paris.

Mas uma versão fílmica experimental brasileira de Walter Daguerre, em curta metragem (Eu, Sidarta) chamou bastante a atenção da crítica em 2012, por sua estética diferencial com o olhar armado na contemporaneidade. O que levou-o a integrar a equipe de criação artística deste Sidarta cênico, como o responsável pela interlocução dramatúrgica.


Sidarta. Walter Daguerre / Interlocução Dramatúrgica. Beth Martins / Renato Livera / Supervisão Artística. Março/2025. Philipp Lavra / Fotos.


Onde o ideário inicial de Igor Angelkorte, aqui adotando como um dos reflexos especulares de sua transmutação existencial, após um afastamento de sete anos de sua carreira atoral, o nome de Angel Ferreira. E, nitidamente, marcado por um instintivo intuito de aperfeiçoamento psicopersonalista, após seguidas releituras de Sidarta.

Longe dos palcos e da TV, passando por um processo de mutação interior sob profunda e alentada busca de si mesmo, isolando-se, nas matas e rios da Chapada dos Veadeiros, em Cavalcante (Goiás), num retiro de mortificação metafísica de corpo e de alma. Que, em 2024, conduziu, afinal, ao processo de criação autoral, direcional e performática da peça Sidarta.

Contando com o valioso apoio de um apurado staff, a saber, além de Walter Daguerre, trazendo a supervisão artística de Beth Martins e Renato Livera, composta ainda pelo apoio de Lavínia Bizzoto. Para um espetáculo de dimensionamento minimalista, a começar do único elemento plástico, um simbólico tapete com design orientalista.

Sem qualquer figurino, salvo uma breve aparição do ator numa indumentária leve e quase transparente no seu prólogo, desenvolvendo-se, a seguir, um absoluto e assumido desnudamento de sua corporeidade até o epílogo, pós cem minutos da representação.

Sua nudez tendo o significativo metafórico do despojamento de qualquer elemento que esconda ou disfarce a natural fisicalidade humana, pelo ato de entrega total à busca de nossa interioridade espiritual e “de como conviver com o seu eu”, remetendo à textualidade de Hesse. Mesmo o mais conservador e acomodado dos espectadores, em sua imersão total na força e no carisma de suas palavras, acaba aderindo à mensagem estética da proposta.

Ampliada pela energia cativante que o ator imprime na conexão das variadas modulações verbais, expressando as diferentes personagens do livro,  com a espontaneidade de seu gestualismo corporal, num quase teatro coreográfico. Pulsão estendida sob a plasticidade de sotaque meditativo dos efeitos luminares (João Gioia e Renato Livera), seu intérprete encarnando, sempre com raro empenho artesanal, os conceituais filosóficos do universo dos Brâmanes.

Como Sidarta, um ator transmutado (Angel Ferreira) assumindo, com corpo, sangue e alma, que aqueles ensinamentos seriam, com certeza e fé,  seu próprio credo de arte e de vida. E, assim, podendo enfim recorrer como mote e signo, daí em diante, até o mais íntimo de si mesmo, à sábia reflexão de Hermann Hesse no entorno do personagem :

Refletiu profundamente, até esta sensação avassalar por completo e chegar a um ponto em que reconheceu causas - pois reconhecer causas, parecia-lhe, era pensar, e só através do pensamento as sensações se tornam saber e, em vez de se perderem, tornam-se reais e começam a amadurecer”...

 

                                              Wagner Corrêa de Araújo  


Sidarta está em cartaz no Teatro Poeirinha /Botafogo, de quinta a sábado, às 20h; domingo, às 19h, de 07 de março a 27 de abril.

MEU REMÉDIO : QUANDO A IDENTIDADE NOMINAL CURA AO DECIFRAR OS MISTÉRIOS DA VIDA E DA ARTE

Meu Remédio. Mouhamed Harfouch / Dramaturgia e Performance. João Fonseca/Direção. Março/2025. Claudia Rodrigues / Fotos.


Celebrando uma bem sucedida trajetória artística de 30 anos, o ator Mouhamed Harfouch desvenda, sob inteligente humor, os segredos no entorno de sua ancestralidade árabe-portuguesa e do exotismo de um nome próprio na configuração de uma vida profissional dedicada aos palcos.

Tudo isto a partir de um original ideário que o levou a escrever e titular esta peça como Meu Remédio, em formato monologal e contando, em sua montagem, com um artesanal dimensionamento cênico propiciado pela direção sempre acurada de João Fonseca.

Inspirando-se no apelido conferido pelo porteiro de seu prédio que confundia a pronúncia verbal de Mouhamed com "meu remédio" e do enfrentamento habitual dos assédios irônicos dos colegas de classe, rindo quando se dirigiam a ele ou fazendo trocadilhos jocosos com seu nome.

O que acabou levando-o a assumir, sem nenhuma alteração e sem demonstrar qualquer constrangimento, a sua identidade original na carreira atoral. Tendo, sequencialmente, se firmado como um dos nomes mais talentosos de sua geração, em diversos segmentos, além do teatro, na televisão e no cinema.


Meu Remédio. Mouhamed Harfouch /Dramaturgia/Peformance. Nello Marrese/Cenografia. Março/2025. Cláudia Rodrigues/Fotos.


Sendo que desta vez, neste seu primeiro monólogo, mostra múltiplos ofícios atuando numa performance em que sua textualidade despretensiosa, não só provoca o riso pelo acerto de suas colocações bem humoradas, ao mesmo tempo em que se exibe como cantor, instrumentista solo e, ainda, na versatilidade de seu gestualismo corporal.

Mas o espetáculo alia ao seu propósito lúdico, um pensar retrospectivo sobre o passado familiar no legado da vida de tantos imigrantes dos países árabes que, aqui, se estabeleceram sob diferenciais características na sua miscigenação como cidadãos brasileiros adotivos.

Onde, quebrando a quarta parede, o ator estabelece liames com a plateia, comunicando-se diretamente com alguns espectadores no questionamento sobre quem escolheu o nome de nascimento de cada um e o significado que emprestam a isto, tanto na vida pessoal como no convívio social.

Em espaço cênico (Nello Marrese) despojado preenchido por poucos elementos cênicos, desde um baú carregado por registros fotográficos de seus antepassados, como de seu singular percurso existencial, lembrando passagens divertidas com seu pai, de típico sotaque, e de uma mãe com quem se aconselha sobre se pode mudar o seu complicado nome.

Enquanto se apresenta em indumentária (Ney Madeira e Dani Vidal) mais cotidiana num sutil referencial indo de uniforme escolar a roupas de trabalho. Para chegar a uma surpreendente mutação da plasticidade ao evocar as túnicas árabes, numa vigorosa e afetiva conexão Síria/Brasil, em meio a envolventes efeitos luminares (Dani Sanchez).

Embora Mouhamed Harfouch favoreça um lado de maior comicidade em seu empenho pelo encontro cúmplice entre ator/espectador, Meu Remédio nunca deixa de revelar um convicto investimento numa perceptível carga dramática capaz de conduzir à reflexão.

Afinal, em nossa passagem pelo planeta, antes de mais nada, ficamos conhecidos pelo nome que carregamos, pontuado desde  os momentos de absoluta alegria ao contraponto de angustiosas tensões  que nos cercam até o instante terminal.

E é na força de sua espontaneidade interpretativa que Mouhamed Harfouch faz irradiar seus identitários recursos histriônicos e dramáticos por intermédio de uma peculiar gramática cênica, imprimida no seguro comando cênico/direcional de João Fonseca. Sabendo mostrar um crescendo de maturidade atoral em exercício dramatúrgico sinalizado por seu lado confessional e introspectivo.

Expandindo-se num jogo teatral vivo com reflexos curativos especulares ecoando, afinal, a esclarecedora palavra de seu próprio autor e intérprete: “A peça é uma comédia mas carrega uma reflexão sobre aceitação e pertencimento, sobre entender que, muitas vezes, o maior remédio é aceitar quem somos”...

 

                                            Wagner Corrêa de Araújo


Meu Remédio volta ao cartaz, agora no Teatro Vannucci, sábados e domingos, sábados às 20h; domingos, às 19h, de 15 de março a 27 de abril.


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