SIDARTA : LIBERTÁRIA CONEXÃO DRAMATÚRGICA E EXISTENCIAL ENTRE A ESPIRITUALIDADE E A CORPOREIDADE

Sidarta. Angel Ferreira / Performance, Concepção Autoral e Direcional. Março/2025. Philipp Lavra / Fotos.


Publicado em 1922, sendo cronologicamente seu quinto romance, Sidarta foi uma das duas  obras fundamentais, ao lado de O Lobo da Estepe, para a concessão do Prêmio Nobel de Literatura a Hermann Hesse 24 anos depois de sua publicação. Embora parcela significativa da crítica literária considere Demian, 1919, como sua proposta ficcional mais avançada e inventiva.

E é a partir de uma livre adaptação, em formato de monólogo, que o ator Angel Ferreira faz sua primeira incursão num espetáculo solo, concebido, dirigido e interpretado por ele e, agora, alcançando depois de instantâneas apresentações, uma mais longa e significativa temporada.     

O fascínio exercido por esta narrativa, além de inspirar gerações por seu apelo ascético e filosófico, conclamando pela paz interior e pela busca do sentido da trajetória existencial, levou-a por vezes às telas sendo mais conhecida a versão de Conrad Rooks, 1972, e nos palcos coreográficos, a adaptação de Angelin Preljocaj, em 2010, para o Balé da Ópera de Paris.

Mas uma versão fílmica experimental brasileira de Walter Daguerre, em curta metragem (Eu, Sidarta) chamou bastante a atenção da crítica em 2012, por sua estética diferencial com o olhar armado na contemporaneidade. O que levou-o a integrar a equipe de criação artística deste Sidarta cênico, como o responsável pela interlocução dramatúrgica.


Sidarta. Walter Daguerre / Interlocução Dramatúrgica. Beth Martins / Renato Livera / Supervisão Artística. Março/2025. Philipp Lavra / Fotos.


Onde o ideário inicial de Igor Angelkorte, aqui adotando como um dos reflexos especulares de sua transmutação existencial, após um afastamento de sete anos de sua carreira atoral, o nome de Angel Ferreira. E, nitidamente, marcado por um instintivo intuito de aperfeiçoamento psicopersonalista, após seguidas releituras de Sidarta.

Longe dos palcos e da TV, passando por um processo de mutação interior sob profunda e alentada busca de si mesmo, isolando-se, nas matas e rios da Chapada dos Veadeiros, em Cavalcante (Goiás), num retiro de mortificação metafísica de corpo e de alma. Que, em 2024, conduziu, afinal, ao processo de criação autoral, direcional e performática da peça Sidarta.

Contando com o valioso apoio de um apurado staff, a saber, além de Walter Daguerre, trazendo a supervisão artística de Beth Martins e Renato Livera, composta ainda pelo apoio de Lavínia Bizzoto. Para um espetáculo de dimensionamento minimalista, a começar do único elemento plástico, um simbólico tapete com design orientalista.

Sem qualquer figurino, salvo uma breve aparição do ator numa indumentária leve e quase transparente no seu prólogo, desenvolvendo-se, a seguir, um absoluto e assumido desnudamento de sua corporeidade até o epílogo, pós cem minutos da representação.

Sua nudez tendo o significativo metafórico do despojamento de qualquer elemento que esconda ou disfarce a natural fisicalidade humana, pelo ato de entrega total à busca de nossa interioridade espiritual e “de como conviver com o seu eu”, remetendo à textualidade de Hesse. Mesmo o mais conservador e acomodado dos espectadores, em sua imersão total na força e no carisma de suas palavras, acaba aderindo à mensagem estética da proposta.

Ampliada pela energia cativante que o ator imprime na conexão das variadas modulações verbais, expressando as diferentes personagens do livro,  com a espontaneidade de seu gestualismo corporal, num quase teatro coreográfico. Pulsão estendida sob a plasticidade de sotaque meditativo dos efeitos luminares (João Gioia e Renato Livera), seu intérprete encarnando, sempre com raro empenho artesanal, os conceituais filosóficos do universo dos Brâmanes.

Como Sidarta, um ator transmutado (Angel Ferreira) assumindo, com corpo, sangue e alma, que aqueles ensinamentos seriam, com certeza e fé,  seu próprio credo de arte e de vida. E, assim, podendo enfim recorrer como mote e signo, daí em diante, até o mais íntimo de si mesmo, à sábia reflexão de Hermann Hesse no entorno do personagem :

Refletiu profundamente, até esta sensação avassalar por completo e chegar a um ponto em que reconheceu causas - pois reconhecer causas, parecia-lhe, era pensar, e só através do pensamento as sensações se tornam saber e, em vez de se perderem, tornam-se reais e começam a amadurecer”...

 

                                              Wagner Corrêa de Araújo  


Sidarta está em cartaz no Teatro Poeirinha /Botafogo, de quinta a sábado, às 20h; domingo, às 19h, de 07 de março a 27 de abril.

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