E, enfim, completaram-se os cem anos (1922/2022) de uma das mais luminosas
representantes de um emblemático universo coreográfico, numa travessia estética
entre a tradição clássica europeia e o descortino da perspectiva de uma
vitoriosa trajetória de arte e de vida, extensiva exemplarmente às gerações
de bailarinos brasileiros que passaram por suas sólidas e exigentes lições de
dança.
Estabelecendo um elo simbólico entre o passado e o presente de três nações (Rússia, França e Brasil) com sua
origem geracional russa a partir de pais exilados numa conturbada Paris dos
anos vinte, onde nasce Tatiana Leskova e começa muito jovem seus estudos para estrear como integrante dos Originais Balés Russos, já na década seguinte.
E foi durante os duros anos da Segunda Grande Guerra que vê
seu destino ser transmutado, no entremeio de uma temporada na América do Sul, à
causa da grande paixão de um brasileiro. Que a convence a ficar de vez no Rio de Janeiro, abdicando da continuidade de
uma carreira de turnês internacionais mas sendo recompensada por ascendente
crescimento artístico em terras brasileiras.
Participando, inicialmente, de algumas Cias independentes e, a seguir, por quase meio século sendo a responsável pelo estabelecimento, como bailarina, coreógrafa e diretora, de um novo e memorável tempo, histórico, estético e, sobretudo, como um signo qualificativo para o Balé do Theatro Municipal carioca.
Tatiana Leskova ensaiando Les Sylphides com o Corpo de Baile do TMRJ, em 2015. Foto/Vania Laranjeira. |
Onde, além da sua convicta dedicação ao repertório clássico
tradicional, incentivou a carreira de alguns dos grandes bailarinos brasileiros
de todos os tempos. Além de ser a depositária mágica da artesanal remontagem coreográfica
de obras históricas, com o sortilégio de haver dançado sob o comando de ícones da
dança do século XX, entre estes Michel Fokine
e Serge Lifar.
Logo que troquei BH pelo Rio, tive o raro privilégio de
conhecê-la pessoalmente no júri de algumas das Mostras de Novos Coreógrafos nos anos 90, em que integrava também a comissão julgadora. Daí em diante estabeleceu-se um clima de fascínio por sua personalidade carismática, sendo marcantes as coberturas documentárias e culturais que dirigimos, via TVE, sobre os habituais encontros nos Festivais de Dança de Joinville, Bento Gonçalves, Pantanal, mais o Balé Teatro Guaíra, sob o crivo estimulante da inesquecível
Suzana Braga e sempre contando com esta ilustre convidada.
Sem deixar de lembrar o testemunho residencial das vesperais de
domingo com vídeos de dança, entremeadas por emotivos relatos de sua vida, não
disfarçando os olhos lacrimosos ao assistir, pela primeira vez, o documentário
americano (Balé Russo) sobre as
arriscadas viagens marítimas de bailarinos solitários, apátridas e soltos (ela
inclusive) pelo mundo afora em tempos de guerra.
E não posso me esquecer jamais de um outro centenário (em Janeiro de 2010) que cruza, como um precioso legado, seu destino artístico/existencial - o de Sergei Diaghilev e os Balés Russos. E que, diante
do desencanto dela pela possível passagem em branco na imprensa brasileira, falei
a respeito com o Mauro Ventura, o que rendeu uma bela capa do Segundo Caderno
em entrevista exclusiva com Leskova
sobre aquele épico momento da história mundial da dança.
Essa é a Dona Tania,
seguida e amada por uma legião de admiradores. Leiam sua envolvente biografia, escrita
amorosamente por Suzana Braga, e vejam o documentário produzido pela Secretaria Municipal de Cultura sobre sua vida e obra, aí entenderão bem quão emblemático é este
centenário presencial. E tão afetiva como deve ser esta celebração de uma
insigne personalidade da dança e da arte, no atravessamento de um século biográfico
e de processo criador que já está inscrito nas páginas da história.
Em justo tributo a Tatiana Leskova por este dia especial, o pensar poético de um de seus contemporâneos ilustres dos tempos europeus e, como ela, um eterno amante da dança - Paul Valéry :
"Que a dança faça nascer, pela sutileza dos traços, pela divindade dos ímpetos, pela delicadeza das pontas paradas, essa criatura universal que não tem corpo nem rosto, mas que tem dons, e dias, e destinos"...
Wagner Corrêa de Araújo
Tatiana Leskova em Bodas de Aurora. Nova York, 1960. Foto/Maurice Seymour. |
4 comentários:
Muito bem lembrado. Muito bom texto!
Lindo e emocionante relato sobre uma grande dama do Ballet! Bravo!
Texto lindíssimo do Wagner e que nos conduz a total história tão real de TatianaLeskova
Parabéns Wagner,pelo emocionante texto sobre o centenário de dona Tânia!Bjo grande
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