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Ficções. Dramaturgia/ Direção Rodrigo Portella. Com Vera Holtz. Outubro/22. Fotos/Ale Catan. |
“Não há deuses no
universo, nem dinheiro, nem direitos humanos, nem leis, nem justiça fora da
imaginação comum dos seres humanos”. E é a partir deste provocador desafio no entorno das bases
conceituais da antropologia e da psicologia evolucionista, que se estrutura o
livro “Sapiens : Uma Breve História da Humanidade”, do
pensador israelense Yuval Noah Harari.
Que, por seu caráter polêmico e questionador, se tornou um dos maiores fenômenos editoriais desde sua publicação em 2014. E onde ele defende sua tese, a partir das mutações do primitivo homem das cavernas em homo sapiens, num alcance historicista sob teorizações especulativas de 70.000 anos até o presente milênio.
De como teria acontecido o processo evolutivo a começar da descoberta do poder cognitivo que foi transformando o homem em dono exclusivista da natureza indo da caça e da coleta à exploração agrícola, passando pela investigação científica seguida da revolução industrial.
E, na sequencialidade, às revoluções promovidas pela
informação e pela biotecnologia que seriam seguidas pela era terminal do
destino civilizatório do homo sapiens.
Numa história sempre pontuada pela prevalência dos mitos como única causa e
efeito ficcionais de tudo, desde a fabulação bíblica às aplicações tecnológicas
da IA - Inteligência Artificial.
E é no entorno desta realidade de sonho e de niilismo onde, na palavra de Harari, “você nunca admite que a ordem é imaginada”, que foi incitada a surpreendente tessitura cênico/literária da peça Ficções. Do mentor da idéia (Felipe Heráclito Lima) à sua versão dramatúrgica/direcional por Rodrigo Portella, destinada aos partners performáticos - a atriz Vera Holtz e o músico Federico Puppi.
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Ficções. Vera Holtz e Federico Puppi. Cenografia/Bia Junqueira. Outubro/22. Fotos/Ale Catan. |
E aí se estabelece uma contundente dialetação da dramaturgia
na sua livre e personalizada releitura da obra original, sempre com uma sólida
funcionalidade das atitudes criadoras.
Onde o escritor (Harari), o dramaturgo(Rodrigo Portela) e a atriz (Vera Holtz), esta
em absoluta potencialidade carismática como a portadora psicofísica da mensagem,
se confundem todos como personagens, sob um sotaque pirandelliano, sintonizados em visceral mergulho no imaginário.
Desdobrando-se esta pulsão de energizada inventividade, assumida pela direção de Rodrigo Portella, na
agregação de outros bravos parceiros a um projeto esteticamente arrojado. Com a necessária contundência para uma transgressiva
temática armou-se, assim, a interlocução dramatúrgica através do tríptico Bianca
Ramoneda, Milla Fernandez e Miwa Yanagizawa.
A ousada cenografia (Bia Junqueira) em palco quase vazio, que
não esconde suas urdiduras técnicas e bastidores, transforma a caixa cênica numa
instalação plástica (Arquitetura do Efêmero) centralizada no sugestionamento de
um grande monólito/mobile, servindo como espaço imagético/especular para o genoma neandertal. Ampliado em seu impacto visual por efeitos luminares (Paulo Cesar Medeiros) sabendo
captar climas textuais de envolvência psicológica.
O figurino (João Pimenta) da atriz Vera Holtz contrasta com o
despojamento da indumentária masculina - uma capa que deixa descoberto o corpo
quase nu do violoncelista Federico Puppi, enquanto tonalidades mais sóbrias marcam
os trajes e o visagismo de Vera Holtz remetendo a ritualísticas figuras
femininas de eras ancestrais.
Vera Holtz, reafirma sua maturidade atoral em irrepreensível
performance como uma mulher “sapiens”,
dividindo-se entre instigantes momentos dramáticos e espontâneas reflexões de irônico
humor, com alcance imediato e cúmplice da plateia. Enquanto as incidências
instrumentais, sob autorais acordes camerísticos-roqueiros, em energizado contraponto
físico/musical integram Federico Puppi à
proposta.
No desafio de um conflito de vontades, promovido em Sapiens, crenças religiosas, direitos
naturais, ideologias politicas não passariam, afinal, de meras alegorias, uma
tela em branco ou perguntas sem respostas. Mas cuidado, como estamos em tempos
perigosos onde prevalecem o retrocesso e a intolerância, lembre-se de Voltaire : “Deus não existe, mas não diga isto ao meu servo
para que ele não me mate à noite”.
É este o desafiante enigma, identificado na magia da resposta dramatúrgica à ficcionalização da História e da própria realidade humana, que está fazendo Ficções se tornar a grande surpresa da temporada teatral 2022...
Wagner Corrêa de Araújo
Ficções está em cartaz no Teatro I/CCBB, de quarta a sábado, às 19h30;domingo, às 18h. Até 30 de outubro .
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