Pedro I. Criação de Roberta Brissom, Daniel Herz e João Campany. Setembro/2022. Fotos/Patrick Gomes. |
Para o pensador Walter
Benjamin o retrato de um personagem detentor do poder transformador não
pode se sustentar apenas na verdade histórica e documental, há que se consolidar
também seu perfil, através do que ele chama de “rastros”, numa abertura a um novo e incisivo conceitual.
Onde, por intermédio da decifração de paralelos vestígios num
quase compasso de descobertas arqueológicas, esta busca investigativa vá além
do fato histórico/biográfico, direcionando-se a um imaginário coletivo
provocador. Capaz, assim, de inspirar uma instigante e dialética tessitura
dramatúrgica que, segundo a teoria brechtiana
em consonância com Benjamin,
esteja longe de qualquer “apagamento de
rastros”.
E foi a partir de uma simbológica e contestadora conjuntura do
que poderia ter sido ou acontecido, entre a historia oficial e o rastreamento
da vida paralela, que se dimensionou a escritura cênica, performática e
direcional da peça Pedro I, em
idealização conjunta do ator João Campany e do diretor Daniel Herz, sob
uma textualidade teatral de Roberta
Brisson.
Sem deixar de instaurar um sotaque dramatúrgico que conecta assumidamente seus criadores tanto a Brecht quanto a Pirandello. Não só através de um olhar armado na dialética brechtiana como na construção pirandelliana da estética especular de um personagem que dialoga com si mesmo, ora como um imperador do século XIX, ora como um ator contemporâneo.
Fugindo radicalmente do desgaste e do lugar comum de um espetáculo comemorativo de data cívica, no caso o bicentenário da Independência do Brasil. Embora cenicamente situado em espaço arquitetônico historicamente ligado a passagens da vida ancestral de seu personagem titular.
Pedro I. Direção de Daniel Herz. Com João Campany. Setembro/2022. Fotos/Patrick Gomes. |
Mas polemizando este contextual com um retrato cáustico de um
imperador post mortem como se este, no terceiro milênio, tivesse acabado de deixar
seu refúgio tumular. Ressaltado pela degradação secular de sua indumentária monárquica,
numa ambientação cênica preenchida por puídas peças de madeira, no entremeio de
lastros de poeira e lama.
Em inventiva concepção cenográfica, direção de arte e criação do figurino por Ana Cecilia Cabral, sabendo como contrastar a beleza pictórica e clean da conservação de um espaço histórico com os detritos próprios e os escombros de uma construção em desmonte. Destacado pelas luzes claras e vazadas de Aurélio Di Simoni, acompanhadas por sutis sonoridades percussivas, indo de acordes melódicos às instantâneas citações fragmentárias de cantos patrióticos, em climática trilha de Pedro Nêgo.
Fazendo desfilar, ora nas impressões verbais de Pedro I ora nas falas de seu alterego
atoral, os espectros familiares de D.
Maria a Louca, D. João VI, Carlota Joaquina, Dona Leopoldina, sem esquecer das
injunções passionais da Marquesa de Santos. Em performance transgressora e reveladora
do instintivo talento de um intérprete (João
Campany) pleno de recursos dramáticos e histriônicos, do irreverente gestual à expressão psicofísica das ambiguidades de um
personagem real e ficcional.
No traçado historicista do mandatário monárquico às suas
ambições contemporâneas de retomada do poder, confrontando-se em suas asserções
com o ator como personagem. Num crescendo dramático e num contraponto critico, de interação
sensorial com a plateia, imprimido por uma sempre precisa e visionária gramática
cênica do diretor Daniel Herz.
Em resgate memorial que conduz da escravidão às mazelas da
formação da Nação Brasileira, no sustento, ontem e hoje, das adversidades
políticas de um País destinado a estar à beira do caos, do machismo e da misoginia
ao preconceito racial, das diferenças sociais ao repúdio à livre identificação
sexual.
Sintonizando-se, em transcendente metáfora dramatúrgica, com o nosso tempo e com nossa atual realidade política, através da intencionalidade de um outro - novo e desmistificador - grito substitutivo de independência : “Liberdade ou Morte”...
Wagner Corrêa de Araújo
Pedro I está em cartaz no Paço Imperial/Praça XV, quintas e sextas, às 17h30m; sábados e domingos, às 16h. Com entrada franca. Até 01 de outubro.
3 comentários:
Obrigado pela excelente crítica ao nosso trabalho, Wagner. Fico muito satisfeito e contente em saber que estamos conseguindo passar todas as nossas preocupações do nosso processo na sala de roteiro e de ensaio.
Um forte abraço.
Eu não faria melhor. Wagner é o nooso mestre. Parabéns pelas duas primeiras criticas da seleção: Macunaíma e D. Pedro I .
O teatro resiste com majestade. Brilha sempre. Parabéns pelo conjunto da obra
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