FOTOS/ ANA CLARA MIRANDA |
“Os espelhos são as
portas pelas quais a morte vem e vai. Olhe para si mesmo no espelho a vida toda
e você verá a morte em ação". Nestas palavras Jean Cocteau, o escritor e artista múltiplo, define a simbologia metafórica
de seu filme Orphée, ambientado no ano 1949.
Na recorrência a uma narrativa ancestral transmutada à modernidade de uma Paris do pós-guerra, no efervescente movimento do Café des Poètes, onde a fama do poeta Orphée, em crise criativa, enfrenta o progressivo sucesso de um autor mais
jovem (Cégeste). E servindo, assim, como mote
inspirador para a ópera de Philip Glass,
estreada em 1993, com mesma titularidade da obra fílmica.
Cortejando uma sedutora Princesa
(A Morte) Orphée testemunha, sob as instâncias do seu motorista Heurtebise, o atropelamento assassino do literato rival (Cégeste). Em sequencial trajeto através
de espelhos, alterativo entre o mundo dos vivos e dos mortos. Dividindo-se
entre a atração da enigmática mulher e o amor de sua esposa Eurydice que, por sua vez, é assediada por
Heurtebise.
Concebida pelo compositor americano como a transposição inicial de uma trilogia operística sobre filmes
de Cocteau, Orphée tem seu substrato estilístico numa partitura de sustento
musical minimalista e na ação dramática de um libreto com quase absoluta
fidelidade textual ao enredo cinematográfico.
Plena dos característicos riffs
e rigorosos arpejos das composições de Glass, nas insistentes repetições das lentas harmonias
tonais e episódicas intervenções jazzísticas e sons de carrilhões. E que a
convicta regência de Priscila Bonfim diante de complexa paleta musical viabiliza, exemplarmente,
diante de uma mais concisa Orquestra
Sinfônica do Theatro Municipal.
Numa escritura musical, com prevalência modal de uma
vocalização recitativa na sua proximidade à fala teatral. Explorada na visceralidade de uma nuance dramatúrgica imprimida pelo comando conceptivo/direcional (Felipe Hirsch) para evitar quaisquer desequilíbrios de predomínio exclusivo do canto sobre a representação
teatral.
Na competência de um elenco onde o destaque maior fica com o quarteto
protagonista. Sem potenciais exigências para facilitar o alcance das tessituras vocais, por seu delineamento composicional mais
coloquialista no Ato I, mas sujeitando-se, às vezes, ao risco da perda diante de ocasionais alturas orquestrais.
Salvo em passagens do Ato II, estas com fraseados agudos e mais melódicos, nos duetos do sempre consistente barítono
Leonardo Neiva no papel titular, com a surpreendente presença atoral, belo timbre e extenso registro de voz da soprano portuguesa Carla Caramujo (Princesa).
Sem deixar de citar a força ascensional de nomes da cena lírica nacional, a soprano Ludmilla Bauerfeldt e o tenor Giovanni Tristacci, ambos preenchendo, com brilho, seus respectivos personagens - Eurydice e Heurtebise. E de uma reveladora, embora instântanea, atuação do tenor Geilson Santos (Cegéste).
Sem deixar de citar a força ascensional de nomes da cena lírica nacional, a soprano Ludmilla Bauerfeldt e o tenor Giovanni Tristacci, ambos preenchendo, com brilho, seus respectivos personagens - Eurydice e Heurtebise. E de uma reveladora, embora instântanea, atuação do tenor Geilson Santos (Cegéste).
Felipe Hirsch enfatiza sua instigante versão dramática da ópera de Philip Glass a partir do clássico filme francês, anos cinquenta, na proposta de um espetáculo que impulsiona efusivos referenciais de outras linguagens e mídias artísticas.
Numa encenação direta e seca explorando a plasticidade de um jogo
especular, onírico e surreal,
materializado na envolvência de inventiva paisagem cênica
(Daniela Thomas e Felipe Tessara) e acentuado nas marcações luminares (Beto
Bruel) provocativas ora de medo, ora de encantamento.
Entre o lirismo romântico e um sotaque sombrio, ampliado nas
tonalidades indumentárias (Marcelo Pies) remissivas ao black&white do filme. Extensiva
a uma funcional fisicalidade gestual/coreográfica (Priscila Albuquerque e Bruno
Beltrão) dos cantores/atores e do grupo de bailarinos (integrantes do BTM) sustentada em movimentos ao contrário,
numa espécie de rewind fílmico.
Numa proposta investigativa de ópera/teatro sintonizada com a
contemporaneidade e capaz, enfim, de mágica convergência estética para um cinético
plano geral, com simultaneidade ritualística, mítica e coloquial.
Onde close-ups reflexivos acontecem no deslocamento dos personagens, artistas e espectadores, em cúmplice e frontal miragem no espelho comum da condição humana e na perplexa expectativa
de seu destino mortal.
Wagner Corrêa de Araújo
ORPHÉE está em cartaz no Theatro Municipal/RJ, sexta, sábado,
terça e quinta, às 20h; domingo às 17h. 150 minutos. Até 31 de outubro.
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