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FOTOS/GUSTAVO PASO |
Entre A Morte do Caixeiro Viajante, estreada em 1949, e O Preço, de 1968, a obra dramatúrgica de Arthur Miller desnudou as falácias do american way of life fazendo, ao mesmo tempo, um dolorido retrato, ainda que de recorrências poéticas, dos desejos e fracassos no suporte da condição humana.
Através de personagens sugestionados pelo crédito do sucesso
em suas trajetórias vivenciais mas, ao mesmo tempo, incapazes de assumir o custo
do enfrentamento de suas inevitáveis quedas. Fingindo terem consciência de seus
méritos mas cientes do quanto suas pulsões de afirmação individualista serviriam
apenas como disfarce para a derrota de
sua dignidade.
No microcosmo de um prevalente modus vivendi familiar, mas refletindo os embates sustentados no intercurso das vitórias e adversidades do universo social. Ancorados pela latente hipocrisia da crença na exclusiva valoração das riquezas materiais estar acima de qualquer preço na busca de um
sentido para a vida.
Um encontro, motivado pela venda dos antigos móveis paternos,
reúne um sagaz antiquário judeu Salomão (Gláucio Gomes) com os irmãos Válter
(Erom Cordeiro) e Vítor (Romulo Estrela), na quebra de longo afastamento e insistente dissidência. Com reiterativas interveniências
nervosas de Ester (Luciana Fávero), a mulher deste último, frente à
fragilidade de suas atitudes comportamentais.
E é no entremeio de ressentimentos familiares, sob causa de
desafetos e medições financeiras, que vai sendo descoberto um visceral conflito
de vontades, raivas, ciúmes e depressões, substrato das diferenças de resultado
nas trajetórias existenciais e profissionais dos dois irmãos.
Onde uma cadeira vazia contextualiza a lembrança de um pai
que usava de suas limitações físicas para manipular, sentimental e
financeiramente, o convívio próximo às inseguranças posturais e descompassos vocacionais
de Vitor. No contraponto deste ser um simples policial confrontado pela ascensão de Válter, como um bem sucedido cirurgião ao preferir distanciar-se do opressivo núcleo
familiar.
Introduzida a trama na volta de Vitor à ambiência memorial de
seus anos de infância e juventude, em acurada reconstituição cenográfica de Gustavo Paso, como um dúplice artífice no comando diretor e concepcional do espetáculo, para sugestionar um empoeirado depósito físico de referências afetivas.
Sem a preocupação da indumentária (Luciana Fávero, dividindo-se
como atriz) se ater à temporalidade da
escrita da peça, no pleno despontar da Guerra do Vietnam. E no funcional recorte de um score sonoro (André Poyart), com uma leve pegada no apêlo nostálgico.
Com efeitos luminares (Bernardo Lorga) entre sombras, ora vazados ora focais sobre os objetos domiciliares para marcar os deslocamentos
da recordação onírica de um tempo passado, num processo de inventário lúdico, para o
pesadelo de ácidas revelações confessionais com a entrada de Válter .
Num round
desafiador de culpas e acusações recíprocas, configurando justificações negativas
de seus próprios atos, certezas e escolhas. Exemplarmente capitaneado pela
dosagem mor imprimida às personificações do cinismo no papel de Erom Cordeiro, com sua irônica indiferença e falseado desprezo ao dinheiro arrecado na venda do acervo
mobiliário.
Ou no contraponto capcioso de um octogenário negociante judeu,
explorado em todos os seus contornos pela convicta performance de Gláucio Gomes,
com sutilizada pausa num registro de risibilidade ao descascar e comer ovos
cozidos, em meio à tensão, de mote crescente, da narrativa dramática.
No presencial de um personagem angustiado por ter sido o mais
diretamente afetado por uma família disfuncional, na obediência cega e filial submissão aos
desmandos e aos enganos paternais sobre a necessária guarda de recursos financeiros, Romulo Estrela revela segurança e brilho interpretativo.
Com intencional folego superativo de uma menor tarimba de palco, na sua mais
habitual experiência em cinema e tv. Mesmo
que, às vezes, torne ausente uma mais modulada enunciação vocal no preenchimento de exigentes
variações das nuances emotivas de seu papel.
Enquanto Luciana Fávero acaba por ser menos favorecida na gradação defensiva
de um personagem, ora rancoroso ora quase mediador, frente à prevalência do emblemático
e ambíguo duelar de dois irmãos.
Na sua denúncia de uma mais-valia
em nossas vontades e na nossa própria integridade moral, a peça O
Preço está sintonizada na contemporaneidade, não só pela força de uma textualidade de clássico como também pela sua artesania conceptiva, via Gustavo Paso e sua Cia. Teatro Epigenia, e a merecer, outrossim, avaliação de Teatro com T maiúsculo.
Wagner Corrêa de Araújo
O PREÇO , após o termino da temporada no Sesc/Copacabana, aguarda a definição de um novo espaço teatral, com o cancelamento recente da agenda no Teatro dos Quatro, às vésperas de sua reestréia.
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