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“Um dia acordei com a
sensação estranha de estar em um lugar e tempo distintos, lembrei do livro do
Oliver Sacks, que tinha lido há quase uma década e escrevi Uma Espécie de Alasca”.
Assim Harold Pinter deu um conceitual à sua única incursão dramatúrgica inspirada em uma textualidade
pré-existente, no caso a obra do celebrado neurologista anglo/americano titulada
como “Tempo de Despertar” que ,
depois do teatro ( 1982 ), ainda inspiraria um filme (1990).
A partir destes relatos clínicos de pacientes afetados por um
prolongado adormecimento comatoso, a que a ciência médica chama de encefalite
letárgica, Pinter idealizou sua peça. E sem manter qualquer contato direto com algum
de seus vitimados, nesta sua releitura dramática, alcança uma narrativa singularizada,
esteticamente, pelo distanciar-se de uma rigorosa contextualização no absurdo teatral.
Mas, como de hábito em seu inventário autoral, embora sem a força de suas criações mais emblemáticas, não
deixando de possibilitar sua visceral provocação ao público ao confundi-lo ,
entre o delírio e a realidade. Se são verdadeiros ou fantasiosos os embates
entre o médico Hornby(Jorge Emil) e a
recém-despertada de um coma de 29 anos, Deborah( Yara de Novaes).
Com as interferências da terceira personagem, sua irmã caçula
Paulinha(Miriam Rinaldi) e, agora, casada com o responsável(Hornby) pelo
acompanhamento clínico do caso, com o qual divide os cuidados e a atenção pela
doente.
Esta trama é inicializada com o despertar do sono/sonho
adolescente de Deborah ,de quase três décadas, no surto da sua dúvida de ter-se
tornado uma mulher adulta, levando-a a um patético questionamento de mágoa ,
suspeita e acusação. Ora, com
mordacidade, dirigindo-se à irmã que não
reconhece longe do memorial da infância(“Onde conseguiu estes peitos?”), ora, com pulsão de revolta, ao médico
e cunhado imputando-o como o sedutor e causa principal do que lhe ocorreu.
Encontrando, aqui, em Yara de Novaes a correspondência para
uma personagem de extremada contundência tanto na sua frágil fisicalidade
sensorial como nos seus rompantes conflitos
psico/somáticos. Ao lado dos mecanismos de acuado sacrífico no papel de Miriam
Rinaldi e de defesa e compreensão profissional no personagem de Jorge Emil que,
sobretudo, favorecem a organicidade da proposta e da representação.
Na invernal, líquida e claustrofóbica ambiência cenográfica de
um quarto de referencial hospitalar, entre
oníricos efeitos vídeo/artísticos(Luiz Duva), sintonizados em modulações luminares(André
Prado/Gabriel Fontes Paiva). E, ainda, materializados no tom asséptico da
indumentária(Débora Falabella/Marina
Aretz) e na climatização soturna via incidências sonoro/musicais(Luísa Maita/Jam
Da Silva).
Diante do desafio de um Pinter com gramática cênica inusitada , do “absurdo verista” aos riscos da sua perigosa frieza narrativa, a concepção
diretora de Gabriel Fontes Paiva soube como bem explorar o contraponto
cronológico alterativo , entre o passado e o presente, o real e o imaginário. Identificado
numa percepção inventora e por elementos cênico/psicológicos de proximidade fílmica, como as atemporalidades de Resnais/Grillet em Ano Passado em Marienbad.
Neste lugar comum da ostensiva veracidade de um diagnóstico
clínico, com um olhar neurológico(O.Sacks), transposto ao palco mas que, enfim, alcança nuances de sutil absurdidade na sua transubstanciação do significado das viagens da
condição humana. Na poesia e no caos, na
vida e na morte, na estranheza de estar indo, simultaneamente, de volta ao futuro
mas com passagem e estadia garantidas para ficar no passado.
Wagner Corrêa de Araújo
UMA ESPÉCIE DE ALASCA está em cartaz na Caixa Cultural/Teatro de Arena/Centro/RJ, de quinta a sábado, às 19h; domingo,às 18h. 60 minutos. Até 17 de dezembro.
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