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A primeira versão da peça, por Renato Borghi e Esther Goés, então titulada de O Que Mantém um Homem Vivo?, aconteceu em 1972/73, ainda no apogeu do obscurantismo militar/ditatorial. Depois vieram mais duas outras com parcerias diferenciais, em 1982, no compasso da redemocratização, e em 2019, sendo esta através do Teatro Promíscuo, extensiva à formatação da que chegamos agora.
Muito apropriada, pós pesadelo bolsonarista, como O Que Nos Mantém Vivos?, ainda a partir
de trechos antológicos de Bertold Brecht apresentados em dois atos, divididos por
subtítulos sob signos precisos que marcaram as absuridades de um quadriênio
politico à beira dos riscos do retrocesso cultural, das conquistas comportamentais e da iminência do abismo
antidemocrático.
Fazendo um justo e necessário tributo à emblemática
trajetória de Renato Borghi em suas quase sete décadas, a partir da era inicial
no Teatro Oficina, ao mesmo tempo que
registra a passagem dos seus 87 anos como um dos mais significativos e atuantes
nomes do universo teatral brasileiro.
O Que Nos Mantém Vivos? Elcio Nogueira Seixas/Renato Borghi-Dramaturgia. Rogério Tarifa/Direção.Março/2024. Fotos/Priscila Prade. |
No apuro concepcional de Elcio Nogueira Seixas, em conluio estético-dramatúrgico com Renato Borghi, sob a direção de Rogério Tarifa, na continuação do que a proposta da peça representa como um recado politico/teatral no entorno de tres momentos cruciais da história política do país.
Dos anos opressivos trazidos
pelo movimento de 64 ao resgate das liberdades democráticas no despontar dos anos 80, direcionando-se à
reflexiva e necessária postura sobre a desconstrução social e política promovida
pelos ainda recentes equívocos da última governança.
A primeira parte - Deus
Acima de Todos - com a cena “Pequeno Monge” de Galileu Galilei e de citações fragmentárias de “Santa Joana dos
Matadouros”, duas obras brechtianas que abordam da prevalência do fanatismo
religioso em detrimento de uma revolução social a favor das classes menos favorecidas
e dos que lutam arduamente pela sobrevivência cotidiana.
Onde sob um dimensionamento cênico musical e circense, em tríplice ideário (por Luiz André Cherubini, Andreas Guimarães e do próprio Tarifa) é mostrado um picadeiro ocupado por uma carroça e uma trupe mambembe de músicos e atores. Que cantam e dançam guiados por imersiva gestualidade (Marilda Alface) conectando danças características brasileiras ao butô.
Direcionados por uma trilha musical (William Guedes e Jonathan
Silva), com recriação de canções, ora inéditas ora da obra de Brecht, que
remetem, simultaneamente ao teatro popular e ao burlesco circense, com subliminares
traços de uma performance operística.
Sem deixar de lembrar dos figurinos (Juliana Bertolini), ora sóbrios ora mais aquarelados, e de artesanais bonecos suspensos que dão um retoque de lúdica fantasia
ao espaço cênico circular. Tudo sugerindo um interativo encontro plateia/arena,
atores/espectadores, em ambientação mágica ampliada por bonitos efeitos luminares (Marisa Bentivegna).
Sendo perceptível um maior e mais incisivo apelo poético e emotivo
no Prólogo e no Ato Primeiro que na segunda parte – Pátria Amada – transmutando
com assumida ironia crítica a identificação do personagem brecthiano Arturo Ui com o convívio de grotescos
tipos e caracteres de nossas últimas e mais que desprezíveis vivências políticas.
Havendo obrigatoriamente que destacar um elenco convicto e
afinado, integrado pela energizada atuação dos atores Elcio Nogueira Seixas e
Cristiano Meirelles, ao lado da luminosa performance de Debora Duboc com espontânea
e irrepreensível força na conjugação de
suas nuances vocais e de seu expressionismo gestual. Além da dignidade
memorialista/confessional e a potencialidade carismática nas intervenções de Renato
Borghi com seu sempre bravo e icônico presencial.
Tudo enfim concorrendo para que a densidade dramatúrgica de O
Que Nos Mantém Vivos?, no seu assertivo dimensionamento cênico/épico tenha muito
a dizer a cada um de nós, sintonizado com a problemática da contemporaneidade e
com o descortino dos caminhos da atual criação dramatúrgica...
Wagner Corrêa de Araújo
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