Vestido de Noiva. Nélson Rodrigues/Dramaturgia. Ione de Medeiros/Direção concepcional. Outubro/2023. Fotos / Netun Lima. |
Já no texto de apresentação da estreia de Vestido de Noiva, em 1943, dizia Carlos Drummond de Andrade: “Nélson realiza um teatro passado no fundo do
ser humano, em vez de um teatro de superfície a que estamos habituados”.
E é dentro dessa assertiva que a diretora mineira Ione de
Medeiros à frente de seu grupo Grupo
Oficcina Multimédia, de longa e
conceituada trajetória em BH, faz sua releitura da mais emblemática de todas as
peças do dramaturgo.
Onde o projeto concepcional, começado no período pré pandêmico
resultou, em primeiro momento, numa versão virtual. E que a mentora aproveita,
por intermédio de projeção frontal, no processo de simultaneidade cênica desta sua presente montagem do Vestido de Noiva.
Numa transcrição fiel ao tríptico lema condutor da peça
original de Nélson Rodrigues - alucinação,
memória e realidade - no dimensionamento
estético de uma textualidade onde prevalecem os delírios do inconsciente, desde
a internação de Alaíde pós ser atropelada
em acidente fatal.
Vestido de Noiva. Grupo Oficcina Multimédia. Ione Medeiros/Direção. Outubro/2023. Fotos/Netun Lima. |
Nesta exposição dos espaços mentais interiores, conturbações intimistas
e devassadoras dos desejos sexuais reprimidos da paciente, recorrendo imaginariamente
às anotações do diário de Madame Clessy,
prostituta assassinada por um jovem amante. Que a direção concepcional de Ione Medeiros
sugestiona via convicta duplicidade performática,
inicializada já na primeira aparição da personagem Alaíde, através das atrizes Camila Felix e Priscila Natany.
Um desdobramento especular que se estende à quebra de limites
interpretativos entre as representações feminina e masculina. Acentuada na
similaridade indumentária dos atores sob ternos escuros e a branquitude dos trajes com referenciais de design para noivas, numa
criação tríplice da diretora, extensiva aos figurinos e aos elementos cenográficos.
Estabelecendo um provocador contraste tanto nos papeis de
protagonismo identitário das irmãs Alaíde
e Lúcia, como também no de Madame Clessy, assumida, aqui, pela
corporeidade travestida do ator Jonnatha Horta Fortes. Ao lado dos outros
integrantes (Henrique Torres Mourão, Júnio de Carvalho e Victor
Velloso) de um afinado elenco.
A caixa cênica preenchida apenas por macas e mesas cirúrgicas que se transformam
em outros elementos móveis, sendo cobertas pelas bonitas toalhas e mantos rendados que,
enquanto expressam a alegre solenidade de uma cerimonia nupcial, remetem ao
triste imaginário branco de uma ambiência hospitalar.
Sempre entre luzes vazadas (Bruno Cerezoli) ressaltando, com
suas tonalidades frias, o melancólico desalento da repressão dos
anseios sexuais femininos e que colocam o duplo protagonismo, em patético inferno
astral, entre a vida e a morte.
No entremeio de ocasionais intervenções sonoras (em
realização conjunta de Ione Medeiros e Francisco Medeiros) potencializando a psicofisicalidade
imersiva desta dramaturgia corporal quase um teatro coreográfico, do palco às inserções de instantâneos recortes
gestuais e performáticos na projeção virtual.
Mesmo que, às vezes, esta interveniência explicativa se torne desnecessária, na sua tentativa de decifrar os mistérios de um drama
psicológico não linear, acabando por confundir mais aquele espectador de primeira
viagem não conhecedor da proposta dramatúrgica
original.
Mas nada que impeça a fruição estética de um envolvente e energizado espetáculo que coloca o estado sensorial meramente lúdico em alerta, acionando reflexivamente o mais acomodado e desatento dos espectadores.
Fazendo ainda lembrar uma fala enunciativa de advertência
do próprio Nélson Rodrigues, na sustentação de um ideário dramatúrgico entre o mal e o bem e que, afinal, o tornou um dos mais polêmicos
autores no universo teatral brasileiro:
“Nos meus textos, o desejo é triste, a volúpia é trágica e o crime é o próprio inferno. O pobre espectador vai para casa apavorado com todos os seus pecados, presentes e futuros”...
Wagner Corrêa de Araújo
Vestido de Noiva está em cartaz no CCBB/Teatro II, de quarta a domingo, às 19h. Até o dia 05 de novembro.
Um comentário:
Assisti e gostei muito. BH de volta aos palcos. Excelente crítica. Saudades da prima Cris Avila.
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