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MADAME BOVARY. Abril de 2015. Foto / Milton Montenegro. |
Quando Gustave Flaubert
começou a publicar, em 1857, os capítulos folhetinescos de sua Madame Bovary, em crua exposição do
absurdo convencionalismo da vida provinciana, foi dado o tiro de misericórdia
na ideologia fantasiosa do romantismo.
O caráter sonhador de uma mulher que incorpora a
personalidade das heroínas da literatura romântica fez Flaubert usar, contraditoriamente,
esta postura idealizada para a criação da narrativa realista, árida e sem
retoques, do cotidiano.
Contrapondo-se ao medíocre moralismo de uma ascendente
pequena burguesia em sua absoluta falta de perspectivas, Emma (Raquel Iantas) não aceita seu mero papel doméstico de mulher
do enriquecido médico interiorano Charles Bovary
(Joelson Medeiros). E, assim, anseia libertar-se, ainda que na condição de
adúltera.
Relacionando-se, sucessivamente, com um nobre, um aventureiro
e um advogado e escandalizando seu microcosmos social, entre traições de esposa
e consumismo desenfreado, é conduzida, como vítima ou culpada, a uma trágica
solução final.
Com exceção do casal Bovary,
todos os outros personagens são alternados entre os atores Alcemar Vieira,
Lourival Prudêncio e Vilma Melo. O destaque como intérpretes ficando, às vezes,
sujeito a maior ou menor relevância textual do papel assumido.
O coeso e exponencial elenco se apoia, assim, entre a auto narração
literária e a performance teatralizada. O que impulsiona um mix reflexivo e facilita o embarque da
plateia no enredo dramatúrgico/ficcional.
O despojamento cenográfico (Marcelo Lipiani) e a sobriedade
indumentária (Patrícia Lambert), sob uma luz climática (Renato Machado), trilha
ambiental (Antonio Saraiva) e adequada movimentação gestual (Márcia Rubin),
acentuam a atemporalidade da proposta.
A visão dos diretores-concepcionais desta MADAME BOVARY, Rafaela Amado e Bruno Lara Resende, de
um personagem inspirador do teatro e, especialmente, do cinema de Jean Renoir e Vincent Minnelli a Claude Chabrol, se apoia mais na
transposição da linguagem literária do autor que na mera narrativa sequencial.
E assim, em superlativo resultado, conseguem manter, com
precisas marcações cênicas, as linhas mestras do romance.
Transcendendo esteticamente, enfim, a permanência de um tema
intrínseco à condição humana de todas as épocas – o tom sombrio dos vazios
anseios existenciais, num quase tributo referencial ao próprio Flaubert:
“Penso, quando escrevo
um romance, em expressar uma cor, um tom. Em Madame Bovary tive a ideia de
expressar um tom cinza - a cor do mofo da existência enclausurada”.
Quando a escritora americana Gertrude Stein adotou Paris nos albores do século XX, ninguém
poderia imaginar que a sua simples presença acenderia uma chama estética na
capital francesa.
Na 27, Rue de Fleurus
,em calorosas vesperais ou soirées, ela recebia todo o pequeno grande mundo
dos visionários da linguagem vanguardista nas artes visuais (de Picasso e Matisse a Juan Gris) e
nas letras (de Apollinaire e Cocteau a Ezra Pound e Hemingway).
Com ocasionais repiques pelo universo coreográfico (Nijinski e os Balés Russos) e musical (de Erik Satie ao jazz).
Enquanto a robusta Madame
Stein, nas digressões de seus escritos inovadores e avançadas posturas, propiciava extremadas polêmicas lítero-artísticas, sua amante, a frágil Alice Toklas, surpreendia com suas
magias gastronômicas, para o supremo deleite daqueles esnobes convidados intelectuais.
É esta arquitetura entusiástica, entre corpos, palavras,
imagens e sabores, que induz o enredo dramatúrgico do texto de Alcides Nogueira
– “Gertrude Stein, Alice Toklas & Pablo Picasso”, sob convicto comando
inventivo dos irmãos Bárbara Bruno/Paulo Goulart Filho.
E reunindo os três personagens míticos, numa original ambientação
cenográfica com inspirados figurinos da pintora Maria Bonomi, que remetem à
confluência das artes naqueles anos de ápice criativo, acentuada pela romantizada
iluminação (Daniela Sanchez) contrastando com o sotaque contemporâneo do score
musical (André Abujamra).
A presença cênica do elenco se concentra, sem prevalência de preocupação cronológica, num processo narrativo mais definidor dos temperamentos
controversos de cada personagem.
Enquanto, em expressiva performance, revela o efusivo desenho
da inteligência dominadora de Gertrude
(Bárbara Bruno) ao lado da sensível submissão de Alice (Sabrina Faerstein) e do ardente élan ibérico de Picasso (Giuseppe Oristânio).
Fazendo, enfim, duelar a genialidade da “geração perdida” de
uma Paris que era uma festa com referenciais da contemporaneidade brasileira, em
jogos verbais monocórdios, de ousadia e originalidade, como Stein usava em seus textos e Picasso
pincelava em seus quadros:
“Qualquer hora é hora de fazer um poema; / Um gênio é um gênio, mesmo
quando nada faz; / Uma rosa é uma rosa é uma
rosa”...
Wagner Corrêa de Araújo
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GERTRUDE STEIN, ALICE TOKLAS & PABLO PICASSO. Novembro de 2014. Foto / Daniel Delmiro. |
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