O Festival o Boticário
na Dança chega à sua segunda edição trazendo importantes grupos da cena
coreográfica contemporânea, incluindo, além dos internacionais, quatro das mais
significativas companhias brasileiras atuais.
Idealizado como um grande projeto de incentivo e patrocínio
da dança no Brasil, o Festival o
Boticário na Dança alcançou o importante número de 24 companhias e 12
festivais em 2014. Lembrando outras iniciativas que marcaram o panorama da
dança no Brasil como o antigo projeto Carlton
Dance, tendo sobre este um alcance maior quando apoia efetivamente a
criação coreográfica do país através do aporte financeiro e do intercâmbio de
linguagens estéticas.
Entre seus curadores tem Eleonora Greca, a primeira bailarina
absoluta do Balé Teatro Guaíra
durante 35 anos e, agora, dedicada a este marcante evento pela dança no Brasil.
No momento em que estreia no Rio, a versão como musical do balé O Grande Circo Místico criado, originariamente, para o Guaíra, tivemos
uma dupla emoção ao reencontrá-la pois além de ter sido a personagem-mor
Beatriz na primeira e na versão de 2004, recordamos o documentário longa
metragem que dirigimos naquele ano sobre o balé em suas duas décadas.
Na abertura do Festival 2014, apresentou-se o Batsheva Ensemble com a coreografia Deca Dance . Considerado o mais importante grupo de Israel desde a
sua fundação em 1964, quando teve o privilégio de ter como sua curadora Martha
Graham que, inclusive, criou ali algumas de suas obras, a cia tem Ohad Naharin como seu atual diretor artístico e é dele a concepção
do espetáculo que abriu o Festival.
Numa rica colagem musical, do barroco ao rock, passando pelo
cancioneiro tradicional judaico, Deca
Dance faz um tributo ao movimento gestual em suas diversas formas, através
de um coeso conjunto de 14 bailarinos com destaque especial para o elemento
masculino, tendo ainda uma referencia textual polêmica e provocadora a partir do escritor da
geração beatnik Charles Bukowski.
O
trabalho vai progressivamente envolvendo a plateia, ora pelo vigor do rock ora
pela melancolia barroca ou lentas inserções sonoras para, subitamente, se
transformar, entre ritmos latinos, com participação de elementos do público
levados ao palco, num ritual coreográfico que literalmente levou o teatro ao
delírio.
Na terceira e quarta noites do Festival o Boticário na Dança,
a brilhante surpresa de duas performances envolventes num quase ensaio sobre o
inventivo e transformador gestual coreográfico, entre o impulso vertiginoso e a
serenidade emotiva de corpos em movimento.
Já conhecida do público brasileiro desde a era do Carlton
Dance e da Cia La La La Human Steps,
a bailarina de origem canadense - Louise
Lecavalier - criou uma legião de admiradores com suas performances, entre o
minimalismo cênico e um direcionamento na revelação de movimentos vigorosos e
inusitados.
Agora ela apresenta sua primeira criação coreográfica - So Blues, onde transcende sua proposta
de extrapolar, além dos limites, as possibilidades de expressão corporal, sejam
abstratas ou advindas dos gestos mais simples do cotidiano.
Com uma reincidente sonoridade eletrônica, o espetáculo, às
vezes, corre o risco de perder o ritmo, especialmente quando insiste em sequencias
lentas, mas a coreógrafa e intérprete, sem perder a espontaneidade de sua
proposta, justifica : “Eu queria permitir que
o corpo dissesse tudo o que ele tem a dizer”.
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LOUISE LECAVALIER - SO BLUE. |
Já a apresentação da Cia de Pequim, Tao Dance Theater foi talvez a maior surpresa da mostra quando reinventa
na coreografia titulada 4, o
movimento como uma forma visual mimética com os corpos dos bailarinos que
jamais se tocam, soltos no espaço como ondas marítimas ou como espectros
levados pelo vento.
E na segunda parte, agora denominada 5, onde os corpos dos bailarinos se tocam in moto perpetuo criando uma massa informe que desperta o
imaginário ao descortinar de seres abissais a cadáveres empilhados. Ou remeter
na sua composição plástica a formas esculturais entre o abstracionismo e a
figuração fantástica, criando um elo magnético entre palco e plateia.
No ultimo dia do Festival 2014 o Boticário na Dança, a presença de
um dos melhores grupos de dança do Brasil - Cisne Negro Cia de Dança, apresentando um inusitado experimento a
partir do teatro dança - Sra. Margareth,
do coreógrafo Barak Marshall. Irônica e bem humorada visão inspirada na peça As Criadas de Jean Genet, com score
musical étnico e envolvente desempenho técnico e cênico dos 12 bailarinos.
O Balé Teatro Guaíra e a Cisne Negro Cia de Dança,
exemplares companhias profissionais brasileiras, encerraram no Rio, o Festival o
Boticário na Dança que trouxe boas surpresas do panorama da dança
contemporânea.
Citar estes conjuntos é lembrar a força de dois grupos que
vem, há quase meio século, enriquecendo a cena coreográfica nacional com
trabalhos situados entre o repertório acadêmico e inventivas incursões
contemporâneas. Ressaltando ainda sua qualidade técnica capaz de alçar voos
ousados na linguagem de nosso tempo, a partir de sua sólida base na formação
clássica.
Experimentando gêneros diversos da criação coreográfica, inclusive
com o destaque dado ao élan cultural brasileiro, a cia Cisne Negro, por exemplo, é capaz de surpreender tanto com a
tradição do Quebra Nozes como nesta criação - Sra Margareth - inserida na lição vanguardista trazida por Pina
Bausch com seu teatro-dança.
Desta vez com concepção do coreógrafo americano
ligado à dança israelense, Barak Marshall trazendo um toque de humor aliado a
um impulsivo ritmo físico, com forte inspiração na demolidora ironia e
sarcasmo da peça de Jean Genet - As
Criadas.
No que se refere ao Balé
Teatro Guaíra dele se tira a lição de como uma cia estatal, no caso o
Paraná, pode ter um papel relevante em prol do desenvolvimento da dança no
país. Tive o privilégio inclusive de dirigir dois documentários sobre a
trajetória da cia que marcaram definitivamente
minha admiração pela qualidade da criação ali desenvolvida : Balé Teatro
Guaíra 30 Anos e O Grande Circo Místico.
E nada mais oportuno do que a escolha de mais uma instigante
versão da Sagração da Primavera, nesta sua trajetória de um século, com a visão
de uma conceituada coreógrafa de origem portuguesa - Olga Roriz, ligada ao
melhor da dança em sua terra com o Grupo Gulbenkian.
A Sacre de Olga tem
um referencial cênico e visceral muito próximo a de Pina Bausch nesta
metamorfose vida/morte, aqui mais catártica no seu tributo à fé na condição
humana, acentuada com a excepcional qualidade imprimida por ela aos solos e
conjuntos no Balé Guaíra.
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