No seu vôo espacial, na
saída do Labirinto após matar o Minotauro, o bravo Ícaro, na pulsão vitoriosa de seu ato mitológico e não atendendo às admoestações
de seu pai Dédalo, viu as suas asas de
cera derreterem-se sob o calor dos raios solares...
Titulando, muito a propósito, sua criação dramatúrgica e
performática de Ícaro, Luciano Mallmann encontra aqui a redenção, enfim, da súbita
queda de um exercício de acrobacia aérea que o transformaria em cadeirante, do alado compromisso até a retomada vocacional
do ofício artístico.
E no contraponto da lenda mítica que fez de Ícaro
um eterno derrotado, o ator,
depois de atroz hiato no processo psicofísico de recuperação e muitas viagens
pelos espaços siderais da mente, foi remodelando suas asas na representação cênica das
adversidades do seu destino de "voador".
Com energizada insistência, ao ver lacerada sua auto estima com
o corte laminar da bem inicializada mas episódica trajetória de um jovem intérprete gaúcho
nos palcos cariocas, entre o teatro e a dança de substrato acrobático, participações
cinematográficas e a entrada no universo das novelas.
Neste reencontro de resgate e de salvação, superando a autocomiseração
e o direcionamento aos estereótipos da piedade social, ele conscientiza a
deficiência na perspectiva da abertura pela superação. Tanto da feliz lembrança
da normalidade de um status físico sem limitações como pela descoberta de
outras formas de expressividade estética no minimalista espaço e na clausura de
uma cadeira ortopédica de rodas dobráveis.
Assim, a progressão dramática de Ícaro alinha cinco casos sintonizados por uma teatralidade documental identificada com relatos veristas, entre nuances clínicas e delírios ficcionais, aliadas a reflexões de desalento, impotência e discriminação. Evitando sempre a queda na autoajuda e no melodramático ao
insuflar um clima de significante aprendizagem do otimismo pelo árido acidente no seu percurso artístico/ existencial.
Em narrativas díspares ora fragilizadas por uma personificação de
risibilidade mais forçada e um pouco falseada como a de um lutador
preconceituoso, ora na sua contextualização dramatúrgica comparativa com passagens de mais convicto sotaque e de maior verdade confessional.
Como o tom de coloquialismo imprimido à singularizada releitura das modulações
autobiográficas de comportamental intimista, em seu referencial de dimensionamento
psicológico do alter ego de
Luciano Mallman, capaz aí de potencializar sensorial afetividade e adesiva
cumplicidade ator/espectador.
Em espetáculo de recursos cênicos mínimos como uma cadeira de
rodas, emblemático signo/fetiche da deficiência física e da luta pela inclusão
social, contrapondo-se ao convencionalismo do ator narcísico e das aparências midiáticas
da Sociedade do Espetáculo, “a guardiã
do sonho” na teorização de Guy Debord.
Onde a espontaneidade gestual e a mascaração facial são
acentuadas por marcações luminares (Fabrício Simões) focais e por fluentes e interiorizadas
inserções sonoras (Monica Tomasi). Sóbrio dentro de sua proposição, o espetáculo de trama
simples tem segura e funcional direção de Liane Venturella ao apostar numa teatralidade de contribuição e
de esclarecimento sobre estados adversos da condição humana.
Pois, citando Boal, “pelo
teatro o ser humano pode observar a si mesmo, perceber o que é e onde está, descobrir
o que não é e onde não está, imaginar o que poderá vir a ser e onde poderá ir”.
Wagner Corrêa de Araújo
ÍCARO está em cartaz no Teatro Poeirinha/Botafogo, de quinta a sábado, às 21h.; domingo, às 19h. 70 minutos. Até 16 de dezembro.
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