MOVE – SÉRIE DOCUMENTAL : QUANDO O CORPO COREOGRÁFICO FALA PELA HUMANIDADE

Batsheva Dance Company, cena do filme Gaga. Concepção coreográfica de Ohad Naharin.


Uma das mais emblemáticas surpresas coreográficas nestes tempos de pandemia é a série em cinco capítulos Move que estreou mundialmente no último dia 23. Produzida pela Netflix, ela está disponível e se torna obrigatória a sua visão em tempos tão dúbios e de tanta incerteza sobre o próprio futuro da humanidade e pela revelação de inusitados caminhos inventivos e experimentais da dança hoje.

Em seus cinco momentos fazemos uma sensorial e reflexiva  trajetória em busca da salvação pela arte através da incisiva postura comportamental de coreógrafos e performers. Antes de tudo, preocupados em subverter qualquer acomodação  meramente lúdica da dança,  sempre com um visceral olhar armado na denúncia dos males da contemporaneidade civilizatória.  

E o mais tocante neste legado documental é o fato de que, pelo menos quatro nomes autorais destas cinco proposições, o público brasileiro teve a chance de vivenciar em caráter presencial, num contato direto com exemplificações do que estes criadores trazem de transformador e de revolucionário para o próprio conceitual estético de uma dança em moldes futuristas.

Ohad Naharin, Israel Galván e Akram Khan participaram no projeto Boticário em Dança, entre 2014 e 2015, no palco do Municipal, enquanto  Lil Buck, que impressiona por fazer um mix hip hop do formato balético original, no traçado  radicalizado dos flutuantes braços e das dobraduras e inclinações originais do Cisne da Pavlova, se apresentava no Teatro Carlos Gomes, em 2015.

Com impressionante sotaque atlético  contorcionista, num mergulho mecânico/cinético, de um corpo/móbile quase sem estrutura óssea, mas nunca perdendo o melancólico acento da efemeridade do ser ave ou artista em processo de decomposição, ele está de volta, desta vez abrindo  a série virtual Move, num segmento de danças urbanas, ao lado de Jon Boogz.

Que mostra a resistência destes bailarinos negros diante do preconceito racial, da perseguição e da violência cotidiana no universo das gangues e do submundo das metrópoles americanas. Tema que retorna no capítulo dedicado ao estilo Dancehall jamaicano, agora extrapolado na radicalização machista e da misoginia, com as batalhas musicais/coreográficas entre grupos masculinos e femininos. Estes últimos aqui representados por uma performance sexy imagética de Kimiko Versatile,  afirmativa da identidade feminista e do empoderamento da negritude com um curioso referencial que remete à realidade carioca dos bailes funks e sua subliminar marginalidade, no entremeio de sexo, tráfico e milícia.


Lil Buck e o Cisne da Pavlova.

Recorrendo, ainda, à ancestralidade indiana, na raiz etimológica do sânscrito tan (tanz, danza, dance, dança) como energia, pulsão, tensão, a nuance simbológica de sacralização irradiada na matéria humana em movimento. Vista também sob uma perspectiva quase similar através da polêmica releitura do legado da cultura flamenca.

Com Israel Galván e Akram Khan, dois outros  intérpretes e criadores coreográficos em Move, revelando detalhamento primoroso na largueza dos braços e manipulação das mãos, volteios do corpo, expressionismo facial e precisão das batidas dos pés ora nus, ora com o ruído dos sapatos flamencos ou dos sinos indianos nos tornozelos. Nas obras e depoimentos ficando evidenciada a transposição de duas linguagens gestuais de polos aparentemente opostos e conflitos com o conservadorismo purista dos ascendentes paternos. 

De um lado a espiritualidade e a tradição da cultura indiana através de Khan (de família bengali radicada em Londres) e a irradiante paixão do flamenco na visão transgressora do andaluz Galván, capaz até mesmo de se travestir no palco, no contraponto dos estereótipos masculinos do substrato cigano deste ancestral movimento de dança e cantares.

Israel Galván e Akram Khan. O flamenco andaluz e a dança ritual de Bangladesh.


Considerado o mais importante grupo de Israel – a Batsheva Dance Company desde a sua fundação em 1964, quando teve o privilégio de ter como sua curadora Martha Graham, inclusive criando ali algumas de suas obras, tem Ohad Naharin como seu atual diretor artístico.

E é dele um direcionamento psicofísico, que ele chama de método Gaga e foi tema de um premiado documentário de 2015, dirigido pelo israelense Tomer Heymann, subvertendo as formas e o convencional dimensionamento da gestualidade. 

Quebrando qualquer principio de linearidade plástica do movimento, ao fazer prevalecer a espontânea individualização de cada bailarino aflorando libertários reflexos energéticos, num conluio ritualístico direcionado a uma pulsão catártica coletiva para e pelo resgate de uma humanidade à beira do abismo...

                                              Wagner Corrêa de Araújo

Ohad Naharin e o cineasta Tomer Heymann.

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