GOLEADAS ARTÍSTICAS EM TEMPO DE COPA

CRAZY FOR YOU. Foto Alil Karakas.

Três surpresas musicais compensaram a decepção brasileira na Copa 2014, entre os meses de junho e julho...

Um musical, com todos os ingredientes das clássicas produções oriundas da matriz novaiorquina, estabelece mais um marco na febre brasileira pelo gênero. Este é o caso da mais nova parceria paulista da atriz Cláudia Raia e o partner artístico e amoroso Jarbas Homem de Mello com o diretor José Possi Netto que, depois do sucesso de Cabaret, retorna agora com Crazy For You.

Originalmente uma ideia dos irmãos George e Ira Gershwin que, em 1930, inovaram o musical da Broadway com Girl Crazy, trocando a então habitual cena aristocrática da alta sociedade de Nova York pelos rudes costumes do interior rural do Arizona. Trazendo no elenco, nada mais nada menos, que Ginger Rogers

Tudo embalado com hits da clássica parceria como Embraceable You e I Got Rhythm que ainda teve, em 1943, a interpretação cinematográfica de Judy Garland e Mickey RooneySua posterior retomada em 1992, sob o título de Crazy For You, conservou o básico do score musical acrescentando outros temas dos brothers Gershwin como Shall We Dance? e Someone to Watch Over Me, além de duas composições até então inéditas.

A temática continuou fiel às peripécias financeiras e amorosas de um playboy novaiorquino Bobby Child (Jarbas Homem de Mello) que sonha ser um grande astro de musical  e  uma garota do meio rural a rústica Polly (Cláudia Raia) que luta, ao lado do pai, para salvar da falência o único teatro local.

A versão brasileira manteve o título e o conflito metrópole/província, elegância social e primitivismo interiorano. E que poderia estar presente em qualquer meio provinciano nosso, através dos diálogos e letras musicais criados por Miguel Falabella, com uma tradução inteligente que não desviou, em momento algum, as características de indicação familiar ou como ideal para a fantasia em todas as idades.

Rico em todos os seus aspectos cenográficos (Duda Arruk) alcança um clima envolvente, tanto nas cenas da Times Square coberta de anúncios luminosos como na praça da cidadezinha com seu típico saloon e um pequeno hotel, mostrando equilibrada presença cênica do elenco e solistas e a luminosidade cênica e vocal da dupla Cláudia Raia/Jarbas Homem de Mello, sob o comando seguro de José Possi Netto.

Sob ambientais efeitos luminares (Wagner Freire) ressaltando uma indumentária (Fabio Namatame) com sotaque de época. Incluindo, ainda, coristas e dinâmico sapateado na maioria dos números, e sonhadoramente cativante nos duetos dos protagonistas, num cenário romantizado como nos nostálgicos musicais hollywoodianos.

E assim, com tantos acertos, Crazy For You faz esquecer suas extensas três horas, tornando maior a magia com a exemplar execução (na conduta musical de Marconi Araújo) das eternas melodias de George Gershwin.

CASSIA ELLER - O MUSICAL. Foto / Marcos Hermes.

Mais um musical dá continuidade à linha estética voltada para a trajetória artístico/existencial de ídolos da MPB e do rock nacional. Desta vez, Cássia Eller - O Musical, com texto de Patrícia Andrade e concepção/diretorial conjunta de João Fonseca / Vinícius Arneiro.

Assumindo uma linha minimalista, a montagem concentra todos os seus recursos inventivos no score musical onde conta com uma expressiva equipe comandada por dois músicos/instrumentistas – a percussionista Lan Lan e o baixista Fernando Nunes, ambos radicalmente ligados ao rico universo rocker da cantora, com sua original incursão mix ao samba e à MPB em geral.

Como em outros musicais, sob a mesma proposta de contar a vida de estrelas como Tim Maia, Cazuza e Ellis (para falar dos mais recentes), fazendo uso da fórmula de fragmentar traços biográficos em consonância com cancioneiros autorais, alternando-se a trama dramatúrgica no entremeio da linhagem representativa e melódica.

Mas, talvez pela rigidez narrativa sequencial da biografia retratada no texto teatral, quase como se fora uma reportagem jornalística, instala-se, aos poucos, um clima monocórdio onde já se sabe o que está por vir, numa quase crônica memorialística, do real ao ficcional, entre a vida e a morte.

E aí, como o despojamento cênico conduz imediatamente à concentração no texto verbalizado, faz falta uma dimensão dramática maior, especialmente pela limitada experiência como atriz da protagonista (Tacy de Campos), mesmo havendo uma equilibrada atuação de todo elenco com o valoroso suporte de uma banda de craques.

Na sua performance, os melhores momentos ficam com o lado mais tímido da cantora na intimidade do dia a dia, o que não disfarça certa insegurança na exposição cênica mais incisiva do temperamento marginal e transgressor da personalidade de Cássia Eller, como sua provocativa marca interpretativa nos palcos musicais.

Felizmente, a identidade física, a similaridade vocal, o gestual aproximado e a qualidade como cantora e instrumentista da protagonista curitibana (em sua estreia profissional como atriz), conseguem manter sua empatia com o público. Que, assim, armando o olhar no verismo com que ela incorpora o sedutor legado musical da cantora, é como se estivesse assistindo não a uma peça teatral e sim a um dos energizados shows ao vivo da emblemática Cássia Eller.

Numa semana de decepção da torcida brasileira, quem trocou os gramados pela arena HSBC no Plácido Domingo in Concert - viu seus lamentos substituídos pela emoção de uma partida envolvente onde os titulares, em lances musicais, levaram à vitória por 7x0, sem pênaltis, o time do canto lírico.

Acontecendo pela primeira vez no Brasil, o tradicional Concerto das Copas que reuniu durante quase três décadas o terceto de tenores – Pavarotti, Carreras e Domingo - chegou ao Rio com um formato múltiplo orquestra sinfônica, coro e solistas operísticos, um pianista clássico e uma cantora popular brasileira Paula Fernandes. Mais próximo assim da tendência de quebrar os limites estilísticos de gêneros musicais que tem trazido um contexto pop ao universo lírico.

Com amplificação sonora para atender aos requisitos do extenso espaço de uma arena para shows populares, especialmente de rock, o concerto teve sua falha na ausência de programa impresso, vez por outra preenchido, com ocasionais problemas técnicos, por legendas nos telões laterais.

Na abertura, a Orquestra Sinfônica Brasileira mostrando o lado maestro de Plácido Domingo na Protofonia de Il Guarany, ópera que ele muito admira e que interpretou e gravou na íntegra, num raro registro contemporâneo internacional da obra de Carlos Gomes.

Seguido da performance da soprano Ana Maria Martinez na Bachiana Brasileira no 5, com menor alcance no fraseado “a bocca chiusa “sugerido na partitura, mas bastante acertada nas suas interpretações de temas da Broadway e zarzuelas . Ora em solo, ora em duetos com Domingo, tendo seu ponto culminante na expressividade tímbrica de bela extensão dos duetos de Il Trovatore e West Side Story.

Quanto a Plácido, surpreendeu desde o início pela presença cênica e por sua brilhante tessitura na linha de barítono, revelando ainda completo potencial lírico em plenos 73 anos, especialmente nas árias de Giordano e Verdi (aliás sua próxima apresentação cênica será um Trovador em palcos europeus). Destacando-se ainda com o calor da plateia para triunfos “pops” de seu repertório, com predominância hispano/latina, da zarzuela ao tango e bolero, com algumas incursões a clássicos da MPB.

Falando-se em sotaque de pop star, a grande revelação foi do carismático pianista chinês Lang Lang, dono de um total domínio técnico do teclado, com uma nuance  de ideal expoente, do romantismo tardio de Rachmaninoff aos arroubos melódicos de temas cinematográficos de John Williams, além da sua entusiástica versão do Chopin das polonaises .

Dinamismo e segurança não faltaram ao comando artístico de Eugene Kohn nas bruscas variações e gêneros da OSB, diante de um repertório recortado para o apelo popular. E palmas ainda para o Coro Ópera Brasil que vem fazendo junto com a direção artística de Fernando Bicudo um inestimável trabalho de resgate de um espaço merecido, diante das agruras de um imenso deserto para o canto lírico brasileiro.

                                               Wagner Correa de Araújo

PLACIDO DOMINGO IN CONCERT.  Foto/ Aris Messinis.

DISFARCE E DENÚNCIA PELA MAGIA DRAMATÚRGICA

CRÔNICAS DE NUESTRA AMERICA. Setembro 2014. Foto/ Marina Andrade.
                                 
Nos anos 70, diante do surto de regimes ditatoriais na América Latina, o artifício da oportuna utilização da palavra literária, por trás dos seus múltiplos segredos com significados mágicos, promovia uma guerra invisível a todas as formas de censura e coerção.

Desenvolveu-se assim uma literatura, de arroubos estilísticos, em que a simbologia narrativa transformava a então opressiva realidade cotidiana num fantástico universo onde, só assim, todas as coisas podiam ser ditas.

Era o chamado Realismo Mágico, com predominância argentina (Júlio Cortazar e Jorge Luis Borges) e colombiana (Gabriel Garcia Márquez), com ecos no Peru (Manuel Scorza), em Cuba (Alejo Carpentier) e na Venezuela (Arturo Uslar Pietri).

Mas com importantes nomes no Brasil, no texto absolutamente ficcional de Murilo Rubião e J.J.Veiga e, também, mostrando seus reflexos nas criações dramatúrgicas e nas crônicas da imprensa diária, como foi o caso do escritor e dramaturgo Augusto Boal.

De seu exílio na Argentina, ele enviava para O Pasquim, irônicos relatos ficcionais de caprichada estética linguística que, mais tarde, integrariam o livro Crônicas de Nuestra America (1977).

E que acabou, quase quatro décadas depois, servindo de inspiração para o envolvente espetáculo com o mesmo nome, em adaptação de Theotonio de Paiva e dirigido, com artesania, por Gustavo Guenzburger.

Um marinheiro inglês John Sutherland (Henrique Manoel Pinho e Lucas Oradovschi) supre, nas ilhas Falkland, a nostalgia de seu exílio, com a aventurosa trajetória de desocupado em terra estrangeira, entre amigos de botequim, amores ciumentos e traiçoeiros galanteadores.

Com marca presencial, num convicto elenco (incluindo ainda, no naipe feminino, Adriana Schneider, Clara de Andrade, Carmen Luz e Larissa Siqueira), todos se destacando por dinâmico gestual cênico.

Em funcional performance que ocupa ainda um inventivo cenário instalação quase suspenso no ar (Dani Vidal/Ney Madeira) - que remete ao cinema surrealista, anos 20, de René Clair, com uma climática luz (Paulo César Medeiros) e sugestivo score musical (João Gabriel Souto).

Tudo, enfim, viabilizando um saboroso roteiro dramatúrgico, com ferino e inteligente humor que cria empatia com a plateia, provocando uma reflexão político/filosófica, por trás do transcendente silencio da palavra literária transmutada em ruidoso e significante clamor teatral.      
     
Outro texto essencial destes anos de pesadelo é Em Família, de autoria de Oduvaldo Vianna Filho, original de 1972, retornando aos palcos numa concepção de Aderbal Freire-Filho que, numa homenagem ao Teatro de Arena, berço de grandes e incisivos momentos teatrais, é titulado, aqui, de Vianninha Conta o Último Combate do Homem Comum.

A propósito da temática nominativa, uma espécie de referencial a uma obra musical, curta mas emblemática, do compositor americano Aaron Copland – “Fanfarra Para o Homem Comum“ onde, apenas com metais e percussão, ele faz um expressivo tributo a um cidadão qualquer, ao mais comum dos homens, àqueles aos quais o destino não diferenciou de qualquer dos outros mortais.

Os personagens desta comédia dramática são exatamente estes homens comuns, seres impotentes diante dos reveses do cotidiano vivendo este dia a dia sem ambições, combatentes mais preocupados em alcançar sua vitória na batalha pela sobrevivência material .

Aqui, o que importa é fazer marchar a máquina da vida compensando com as alegrias do convívio familiar, a difícil luta existencial, sem casa própria, com contas a pagar, entre as dores, defeitos e desafetos. E onde os pais transformam em prêmio a partida dos filhos, ainda que em troca de solidão e abandono.

Enquanto isto, o casal de idosos (Cândido Damm e Vera Novello) vai sendo aniquilado pela carência de recursos que o obriga a trocar o acolhedor ambiente original do lar por um recanto na casa dos descendentes, primeiro passo para o isolamento terminal num asilo de última idade.

A nuance melodramática que o tema faz convergir no roteiro dramatúrgico tem, na versão atual, um proposital distanciamento brechtiano, simbolizado aqui, ora por um cenário minimalista (Fernando Mello da Costa) sob efeitos luminares (Paulo Cesar Medeiros) que evita a prevalência do realismo, ora pela presença permanente em cena de todos os atores e, especialmente, pelo acréscimo de um palhaço (Kadu Garcia). 

Este último, com suas instantâneas entradas em cena interfere na ação, como se interrompesse a trama remetendo à frase operística de I Pagliacci -"La commedia é finita”, provocando assim a reflexão da plateia. A impotência dos familiares diante do destino reservado ao casal idoso é acentuada, ainda, pelo nostálgico score musical de Tato Taborda.

E o equilibrado e acertado domínio cênico do elenco (incluindo-se aí, Isio Ghelman, Paulo Giardini, mais Ana Velloso e Beth Lamas) torna visível a inventiva proposta estética da direção de um espetáculo em processo construtor, onde a cena fatalmente remete ao ato de heroísmo do homem comum arquitetando, cotidianamente, a sua própria trajetória existencial.

                                              Wagner Corrêa de Araújo

VIANINHA CONTA O ULTIMO COMBATE DO HOMEM COMUM. Julho 2014 . Foto/Guilherme Gazzinelli. 

ÓPERA E BALLET : SIGNOS SEXUAIS EM COMPASSO MUSICAL E COREOGRÁFICO

SALOMÉ. Agosto de 2014. Foto/Leonardo Pergaminho

Original de 1892, a peça Salomé, de Oscar Wilde, com base nos relatos bíblicos de Mateus e Marcos, inspirou por sua vez o libretista Hedwig Lachmann para a ópera  sob mesma titularidade, em obra original de 1905 por Richard Strauss.

O ambiente de crueldade, lascívia e luxuriosidade trazidos pela obra do escritor irlandês polemizaram sua almejada estreia com Sarah Bernhardt, onde a enteada de Herodes é um personagem dividido entre a sensualidade e a pureza :

A sua luxúria é o abismo, a sua perversidade um oceano... mas uma joia resplandece como uma estrela entre os seus seios".

Esta definição do próprio Wilde foi extrapolada na versão operística. No cromatismo denso e convulsionado da partitura de Richard Strauss e no enredo de labiríntica aproximação das teses freudianas do subconsciente.

A ópera, que escandalizou em suas primeiras apresentações, acabou se impondo pela força que exige de seus intérpretes, não só como representação teatral mas, ainda, para o alcance exato de seu timbre de sensual musicalidade.

Na versão cênica de André Heller, com acertos na bela iluminação (Fábio Retti) de tons prateados no piso e uma luminosidade sombria por trás das cortinas/véus, que acentuam o ar de exótica lascividade de uma noite de verão, a limitação fica com certo desequilíbrio dos figurinos (Marcelo Marques) e a insistente e incomoda dança das cadeiras no proscênio.

Mas por outro lado, os cantores/atores tem boa movimentação cênica que supre as exigências do denso clima da conturbada trama, com destaque para as nuances vocais alcançadas pelo tenor Paul McNamara (Herodes), como pela reveladora mezzo-soprano Carolina Faria (Herodiade).

Os acordes de suave gravidade do barítono Lício Bruno (Jochanaan) fazem o contraponto perfeito aos agitados timbres, de envolvente alcance vocal da soprano Eliane Coelho (Salomé) que, em sua extraordinária performance de expressivas variações emocionais, remeteu a memoráveis noites, já tão distantes de nossas atuais temporadas.

A brilhante técnica orquestral imprimida pelo maestro Silvio Viegas, enfim, dignificou esta homenagem do Teatro Municipal aos 150 anos de nascimento de Richard Strauss.

Que teve, ainda, um desempenho invulgar na longa ária final da protagonista que, em suas referencias tonais obsessivas lembrou a morte de amor wagneriana, mas num formato que a crítica dos anos freudianos ousou chamar de “Liebestod Psicopático”:

“Tens nos lábios um gosto amargo. Será o de sangue? Ou é o amor que possui um gosto amargo?”.


A sexualidade faz parte do universo coreográfico desde a sua sistematização acadêmica. O que não quer mostrar o balé clássico, com seus fantasiosos enredos, senão a relação sentimental e uma insinuada atração sexual entre um homem e uma mulher?.

Esta forma estética de sublimação, no alvorecer do século XX, fez as plateias reagirem furiosas com as posturas de ruptura do fauno de Nijinsky liberando seus desejos eróticos em cena ou o estado de excitação orgiástica causado pelo sacrífico de uma virgem na Sacre du Printemps

Como, alguns anos depois,  gerou estranheza a coreografia de Bronislava Nijinska para Les Biches onde as pequenas corças  (biches) ou meninas adolescentes são assediadas por jovens atletas narcisistas.

Evoluindo nas décadas seguintes, com Martha Graham trazendo temáticas de liberação das tensões sexuais nas suas criações coreográficas. Para atingir, em nosso tempo, a conceituação de uma dança como teatro dos sentidos, sem limites físicos e fronteiras morais.

Estas reflexões são a propósito da Cia de Dança Deborah Colker que, em termos nacionais, é o grupo que foi mais longe na total liberação da rigidez acadêmica dos torsos, alcançando um estilo de movimentação física, sensual e tão excitante, que a fez próxima dos riscos das competições atléticas. Com esta marca ganhou status e conquistou multidões em suas inúmeras turnês aqui e além mar.

A partir de 2011, a Cia passou a investir na concepção coreográfica narrativa com referencial neoclássico, começando com Tatyana (a partir do Eugene Oneguin, de Puchkin) e, agora, Belle, mais livremente inspirada no romance de Joseph Kessel e no filme de Buñuel, ambos com o título de Belle de Jour.

Experiência que dividiu parte do público e da crítica e que não logrou atingir o acertado lance estético de criações anteriores com sua aposta no gestual físico/acrobático. Marcante em outras obras que, mesmo sob a habitual mecanicidade com a aparente robotização dos bailarinos, traziam implícita uma vigorosa carga emocional.

Em Belle, a indiscutível qualidade da produção com figurinos (Samuel Cirnansck) exuberantes, a envolvente iluminação (Jorginho de Carvalho) e o score musical preciso de Berna Ceppas, além da energizada técnica dos bailarinos, não conseguem esconder uma sensação de espera por algo mais.

A substituição do abstrato pela narrativa sequencial, acaba incorrendo aqui na previsibilidade, especialmente no clima monótono do primeiro ato com sua limitada utilização de sapatilhas de ponta .

Quebrada apenas com a sugestiva presença de uma cortina que cria envolventes e erotizadas formas escultóricas.

Enquanto, no segundo ato, a utilização do corpo como instrumento de prazer num bordel tem melhor alcance da identidade coreográfica da Cia, no dinamismo mais impactante de seu erotizado gestual.

E aí, mesmo sendo Belle um balé de enredo ficcional, é retomado o salto inventivo de Debora Colker na dança contemporânea brasileira, na sua superlativa conjugação do físico com o emocional, apresentando um expressivo retrato coreográfico dos desejos humanos.
                                         
                                          Wagner Corrêa de Araújo

BELLE. Junho 2014. Foto/ Flávio Colker. 

INVASÃO TEATRAL BAIANA NOS PALCOS CARIOCAS

NUNCA NADE SOZINHO. Fotos/Valéria Simões e Renan Ribeiro.

Os palcos cariocas recebem o jovem teatro baiano através de duas montagens originais de Salvador e uma coprodução das duas capitais. 

Isto remete ao ano 2000 quando a grande surpresa da temporada era A Máquina, concepção e direção do pernambucano João Falcão e que deixou, como rica herança para a arte cênica carioca, os atores Wagner Moura, Lázaro Ramos e o mineiro/baiano Vladimir Brichta.

A primeira montagem é Nunca Nade Sozinho, do já bastante conhecido, por aqui, dramaturgo canadense Daniel Maclvor (com In On It, A Primeira Vista e Cine Monstro).

A peça mostra, em formato de 13 rounds, a desenfreada competição pelos meandros do poder, entre dois homens com inusitadas revelações de vida sob mediação de uma juíza (Nadja Turenkko) que, em dúplice oficio, ainda assume a liderança condutora do espetáculo.

Além do equilibrado e revelador presencial do elenco masculino (Ciro Sales e Kadu Veiga), numa egocêntrica partida de perdas e ganhos, expressa no entremeio de incisivo gestual corpóreo e de recortes confessionais sobre o processo de construção do espetáculo, via projeções visuais ao fundo do palco.

Sustentando-se ainda em ambientais efeitos luminares (João Sanches) e fazendo uso de uma uniforme indumentária (Solon Diego) apostando na combinação de tons mais discricionários.

O destaque fica com a envolvente concepção visual (Maurício Cardoso Júnior) em que praia e barcos conduzem a um clima de onirismo surrealista, complementada pela projeção do processo criativo deflagrando questões filosóficas e estéticas.

Às vezes, através de solos e dialetações, apoiando-se num certo experimentalismo linguístico não muito clarificado em sua pulsão crítica, direcionada sempre por abordagens sociais e psicológicas em compasso metafórico e abstrato.

ENTRE NÓS. Foto / Sora Maia.

Quanto ao texto de João Sanches - Entre Nós, tendo à frente o seu próprio autor, trata - se de uma montagem concebida originalmente para o meio escolar e que alcançou, com seu sucesso, o circuito profissional. Onde ele acumula, além da escritura textual, a iluminação e o figurino, inseridos numa cenografia minimalista (Daniela Steele).

Partindo de uma proposta de teatro didático  sobre a diversidade e os embates da comunidade LGBT, a partir do questionamento da homofobia no ensino público baiano.

Onde a narrativa dramática se estrutura nos diálogos de dois jovens adolescentes, com precisas tiradas de bem humorada ironia e referencias inteligentes sobre os relacionamentos do mesmo sexo.

Apesar de muito jovens, os atores (Igor Epifânio e Anderson de Souza) mostram convicta interatividade com a plateia, em seus improvisos narrativos e verbais, com música ao vivo (Leonardo Bittencourt), contando ainda com a acertada condução do diretor/dublê de autor (João Sanches).

Já o caso de Os Javalis, inspirado no universo do teatro do absurdo, com um conceitual estético de recorrência a Beckett e Ionesco, é uma original transmutação textual e cênica do universo polêmico destes criadores por um dos mais conceituados autores baianos da nova geração - Gil Vicente Tavares - que vem se tornando um especialista no gênero.

Em forma de parábola, o roteiro dramatúrgico aborda o pânico, num confronto quase alucinógeno, de uma cidade atacada por javalis, descortinado como fuga ao vazio existencial de dois personagens (Rafael Medrado e Emiliano D'Avila).

Com a simplicidade funcional dos elementos tecno-artísticos desde os sucintos elementos cênicos (Lorena Lima) a um figurino cotidiano (Hugo Leão), sob uma iluminação (Fábio Espírito Santo e João Gioia) mais vazada que focal, ressaltada por energizada trilha sonora (Ricco Viana).

A boa performance dos atores tem o seguro comando de Emiliano D'Ávila, paralelo à atuação atoral, agora, em sua primeira incursão no papel de guia diretor, depois de sua revelação como mais um talentoso intérprete baiano radicado na cena teatral e televisiva carioca .

                                           Wagner Corrêa de Araújo

OS JAVALIS. Foto / Bruno Heitor.

Estas três peças estiveram na cena carioca durante a  temporada 2014, entre maio e julho.

REVELADORAS INCURSÕES INVESTIGATIVAS DE UM TEATRO QUASE VERDADE

O PASTOR. Foto/Janderson Pires.

Continuando o ''Inventário da Temporada 2014" ...
Três peças mostram os novos caminhos do chamado Teatro Documentário. O Pastor e Acabou o Pó, ambas de Daniel Porto, e Olheiros do Tráfico, de Moisés Bittencourt.

Começando por O Pastor com a proposta documental de um culto evangélico, levada ao limite entre a representação cênica e uma postura naturalista, que remete a experiências do teatro verdade ao neo realismo cinematográfico e até ao sugestionamento de uma quase matéria jornalística ao vivo.

Impressiona a pesquisa laboratorial que certamente fizeram seu autor Daniel Porto na criação dramatúrgica e o elenco na proposição cênica e figurinos por Karlla de Luca, sob acertada direção de Carina Casuscelli.

Em substrato dramático com um sotaque de irônico humor que envolve, em apelo carismático, os 30 espectadores - a lotação completa por sessão de um pequeno espaço cênico alternativo com crítico referencial de templo evangélico.

Em performance que faz interagir no mágico carisma palco-plateia e no destaque especial pela afinada atuação do protagonismo titular de Alexandre Lino, junto a uma equilibrada interpretação do elenco coadjuvante (Katia Camello e Cesário Candhí).

ACABOU O PÓ. Foto/Janderson Pires.

Outro experimento dramatúrgico com revelação autoral da mais recente geração da cena carioca é, também, através de Daniel Porto. Agora, no seu segundo texto dramatúrgico para público adulto - Acabou o Pó - com aprofundamento do estudo de caracteres comportamentais do cotidiano.

Se em sua peça inicial - O Pastor - teve como signo um teatro documental ao abordar, com extrema verossimilhança, os desmandos obsessivos que a religião pode exercer sobre as mentes prisioneiras de seus asseclas ele continua, aqui, sua busca investigativa por um teatro de sustento verista.

Mantendo o contexto cênico de um retrato sem retoques das mazelas sociais Daniel Porto prioriza uma postulação crítica e sua consequente absorção no posicionamento reflexivo do público.

Outra vez, são quebrados os limites palco/plateia numa encenação despojada (Karlla de Luca) à base da singularidade de uma mesa rústica, rodeada por cadeiras e coberta de utensílios domésticos, onde os personagens assumem os valores suburbanos cotidianos de duas donas de casa - Kelly (Alexandre Lino) e Nena (Leo Campos).

A loquacidade de seus diálogos, de autêntica ingenuidade, vai revelando os fatos mais comuns e corriqueiros daquele pequeno mundo de conflitos, decepções, crises afetivas e carências financeiras.

Sob o efeito de luzes ambientais (Binho Schaefer) e conseguindo escapar de posturas estereotipadas, os dois atores se apoiam com acertada naturalidade e ritmo, em coesa nuance humorística, sob o firme comando diretorial de Vilma Melo.

Que, pela proposital ausência de aparatos cenográficos, acaba possibilitando, assim, maior concentração focal da plateia, tornando factível a condução ao riso, teorizado filosoficamente por Rabelais,  como a mais útil de todas as formas de crítica, por ser a mais acessível às multidões.

A outra peça que surpreende, nesta mesma linha de pesquisa, é Olheiros do Tráfico, com texto e direção de Moisés Bittencourt, reunindo dois atores jovens originários de grupos teatrais fora do circuito Zona Sul que assumem os personagens com tal dose de veracidade, no linguajar e no gestual, que torna absolutamente funcional a chancela de Domingos de Oliveira na supervisão da montagem:

"Excelentes atores sobre todos os aspectos. É uma história difícil de contar, porque é uma história do tráfico. Da injustiça social que já foi contada dez mil vezes, mas acho que tem histórias que tem que ser contadas sempre".

A concepção perde apenas por um desnecessário didatismo de reiterativa simplificação narrativa linear e que acaba, num tom abaixo, interferindo no fluxo sequencial para o alcance mais verista desta trama dramatúrgica inspirada na ambiência marginal das comunidades.

Mas valendo, sobremaneira, pelo convicto desempenho dos jovens atores Sandro Barçal (Crika) e Bruno Suzano (Tavim) que estão a merecer seu lugar ao sol no competitivo mundo das séries jovens televisivas.

Infelizmente ocupado muitas vezes por atores iniciantes de menor qualificação,  disfarçando a falta de talento sob o signo de"galãzinhos"de mídia e de ocasião.

                                        Wagner Corrêa de Araújo

OLHEIROS DO TRÁFICO. Foto /Márcio RM.

REVISITANDO O UNIVERSO DRAMATÚRGICO DE TCHEKHOV, IBSEN E TENNESSEE WILLIAMS

O CANTO DO CISNE. Com Edney Giovenazzi e Pietro Mario. Foto/Guga Melgar.

Quando Anton Tchekhov escreveu uma de suas primeiras peças – O Canto do Cisne, com o subtítulo de Um Estudo Dramático em um Ato, ele estava aproximando a dramaturgia ao conceito filosófico do escritor Henry James sobre o romance, como um olhar da trajetória existencial pelo buraco da fechadura.

Ao mesmo tempo ele antecipava, nas últimas décadas do século XIX, um tema mor na obra dos pilares do teatro do absurdo – Ionesco e Becket, a destruidora força do tempo na decadência da velhice, relegando a condição humana ao abandono e ao esquecimento. Aqui representada pelo desenlace de um ator no vazio de um palco sem plateia.

Inconscientemente talvez, até pela não compreensão e pelo fracasso da peça na época, o escritor e dramaturgo russo em seu texto prenunciava paradigmas da metalinguagem teatral. Um tragicômico ensaio lírico sobre um ator fazendo o personagem de um ator na prestação de contas de sua carreira, teatro dentro do teatro em clima crepuscular.

Em incisivo desafio dramatúrgico para grandes atores executarem seu testemunho do ato de criadores, fazendo desta profissão o ato de uma vida inteira dada de presente ao público, com suas alegrias, sua melancolia, seus sonhos e desejos mais intimistas.

E numa significativa escolha do ator Edney Giovenazzi para celebrar seus sessenta anos de carreira, relacionando este momento com duas de suas brilhantes atuações que remetem ao Tchekhov de O Jardim das Cerejeiras e ao Ionesco de A Agonia do Rei.

A direção de José Henrique, também responsável pela acertada baixa iluminação, conseguiu captar, com dignidade, o sombrio mundo de um ator num camarim, pós outra representação de sua sofrida sobrevivência em cena, num decadente teatro provinciano e sem nenhum público .

Como coadjuvante, a presença de outro veterano dos palcos - Pietro Mario em expressiva performance no papel do ponto, na paralela simbologia dos bastidores da representação. Além da representação do protagonista, o velho ator Vassíli (Edney Giovenazzi) que tem seu mais alto alcance numa atuação propositalmente cansada onde a exaustão é o próprio apanágio do personagem.

O que faz lembrar um depoimento de Maria Callas diante das críticas negativas por seu último ato de La Traviata, em que ela afirma, convicta, que o aspecto ofegante e pesado de sua interpretação foi propositalmente assumido, como uma metáfora da derradeira fadiga da dama das camélias diante das cruéis vicissitudes de seu destino.

A DAMA DO MAR. Direção Paulo de Moraes. Foto/Léo Aversa.

Original de 1888, a peça A Dama do Mar é um drama interiorizado, com um texto realista mas com sentido misterioso e quase místico, que representa, na obra de Henrik Ibsen, uma incursão ao gênero simbolista .

Ao lado de Casa de Bonecas e de Hedda Gabler, mais uma vez, são os personagens femininos que anseiam pela perspectiva de libertação do cotidiano sufocante, como escape do mero papel de mães e esposas insatisfeitas, no caso Ellida (Tania Pires), a dama do mar, ao lado de suas duas filhas no imutável desencanto do meio provinciano.

Convivendo com Wangel (Zeca Cenovicz) um marido envelhecido, um médico quase simplório mais próximo do prazer da bebida que de um verdadeiro amante, ela sonha o tempo inteiro com um atraente homem do mar, um marinheiro que conhecera anos antes, o Estrangeiro (João Vitti) que poderia suprir o imobilismo e quebrar as grades de seu casamento infeliz.

Ambientada numa região norueguesa onde o mar marca fortemente o limitado dia a dia destas vidas melancólicas da Dama e do Estrangeiro sua progressão dramática chega a enunciar sentimentos amorosos líquidos, nos encontros metafóricos destes seres quase anfíbios.

A peça, na visão de Maurício Arruda Mendonça sob criativo comando de Paulo de Moraes, acentua perceptivelmente este aspecto. E ainda remete a uma concepção anterior de Bob Wilson para o mesmo texto onde ele radicalizava fazendo de Ellida uma sereia e do Estrangeiro um ser das profundezas marítimas.

Na minimalista cenografia, o destaque absoluto são os aquários - um menor com peixes reais, avermelhados como uma simbologia da libertação que estas águas podem trazer, ao lado de um de grandes proporções onde os idealizados amantes mergulham.

Numa evocação simbológica da trama dramatúrgica, provocando belíssimo efeito estético da fusão de corpos, em gestual erótico e de plasticidade escultórica. Emoldurada com um adequado fio azulado da iluminação (Maneco Quinderé), figurinos atemporais e sonoridades entre o eletro/pop e acordes new age.

Com presença equilibrada e cumplicidade do elenco coadjuvante (Renata Guida, Andressa Lameu, Leonardo Hinckel, Joelson Medeiros), a discreta atuação inicial da protagonista chega ao seu melhor momento no epílogo onde, então, se estabelece um envolvente embate entre a performance mais sedutora do Estrangeiro e a contida mas correta fala de Wangel, ao lado de uma mais aprofundada construção da personagem Ellida.

Enfim, um espetáculo que vale ser conferido ainda que seja para sentir ali o arquétipo voo metafísico de Ibsen na afirmação da individualidade, presente sempre na epígrafe de suas peças:“Poesia é saber julgar a si próprio”.

"O que aconteceria se, em vez de apenas construir nossa vida, nós nos entregássemos à loucura ou à sabedoria de dança-la?”- bela reflexão do pensador francês Roger Garaudy, que poderia referenciar a envolvente montagem da peça de Tennessee Williams, Fala Comigo Como a Chuva e Me Deixa Ouvir.

Em inventiva concepção do diretor Ivan Sugahara, a peça itinerante percorre os ambientes de uma bela casa carioca das primeiras décadas do século XX, em sessões vesperais de finais de semana para aproveitar os efeitos crepusculares, ora ao ar livre, ora através das janelas e portas, numa atmosfera lírica que remete, através desta iluminação natural, às telas do pintor realista americano Edward Hopper.

Com este contexto estético é retomado um dos temas mais caros ao dramaturgo americano, o conflito permanente da condição humana entre o sonho e o abismo. Refletido numa concepção cênica de solilóquios verbais, vozes em off, raros diálogos ou até de pausas e silêncios.

Um retrato dramatúrgico intimista dos momentos efêmeros de dois amantes, onde o amor já é um sentimento em demolição, diante das felizes lembranças do passado e as incertezas e temores do futuro.

Onde a cenografia minimalista (André Sanches) e os figurinos romantizados (Tarsila Takahashi), tornam-se quase uma pintura metafísica acentuando a interiorização deste casal imerso na incomunicabilidade, almas prisioneiras e torturadas, como todos os personagens de Tennessee Williams. Além da funcional trilha sonora misturando clássicos da canção norte americana a passagens de Philipp Glass.

Valorizada ainda por um olhar cinematográfico compartilhado pelo público com suas tomadas aéreas externas, planos médios e gerais e até grandes closes insinuados na expressão facial da cativante performance dos protagonistas (Angela Câmara e Saulo Rodrigues).

E, ainda, numa poética direção de movimentos (Duda Maia), ora marcada pelos rewinds como um processo de edição de takes existenciais, em alegorias nostálgicas de um amor finalizado.

Ou completada nas passagens de gestual coreográfico, dança/teatro de memórias e lembranças do apego emocional de dois seres em conflito, onde as palavras já não bastam para vencer a estranheza da separação.

Enfim, um espetáculo ritualístico, na confluência de suas diversas linguagens artísticas, e uma surpresa criadora imperdível.

                                               Wagner Corrêa de Araújo

FALA COMIGO COMO A CHUVA E ME DEIXA OUVIR. Foto / Dalton Valério.
Estas três peças estiveram em cartaz nos palcos do Rio e de SP, entre maio e julho de 2014.

TEATRO CINEMATOGRÁFICO : TERROR, INSANIDADE, DESPOJOS HUMANOS E VAZIO ESTELAR

CINE MONSTRO. Enrique Diaz. Foto/Camilla Maia.

Duas montagens premiadas mostram uma inusitada abordagem de temas polêmicos, misturando delírios mentais com terror cinematográfico - Cine Monstro - e escatologia e morte com mordaz ironia  - Adubo ou a Sutil Arte de Escoar Pelo Ralo.

A primeira peça é de autoria do conceituado dramaturgo e dublê de cineasta, o canadense Daniel Maclvor, já conhecido por aqui com as aplaudidas versões de In On It e A Primeira VistaCine Monstro tem sua narrativa dramatúrgica calcada nas alucinações mentais quase psicanalíticas de um personagem que se desdobra em treze outros, com histórias que abordam desde os mais cotidianos atos às insanas viagens pelos espaços siderais da mente.

O texto, de extensa progressão dramática sequencial, com sua reiterativa retomada de frases e ideias já exploradas, não deixa escapar seu sotaque monótono. Que só é interrompido pela provocação do espectador, ora através do blackout total por alguns instantes ora pelos bruscos clarões dos efeitos luminares.

Com rica projeção videográfica, a montagem tem seu referencial no terror cinematográfico através de um intrigante crime filial, funcionando em terceira dimensão quando o brilho maior fica com o luminoso presencial do ator Enrique Diaz, aliada à sua inventiva concepção e comando do espetáculo.

Quanto a Adubo ou a Sutil Arte de Escoar pelo Ralo, é uma criação coletiva do teatro brasiliense e que resiste em cartaz há uma década em inúmeras turnês, capitaneada pelo talentoso ator Juliano Cazarré e pela direção acertada de Hugo Rodas.

Quatro personagens em torno de uma mesa carregada de copos e garrafas e um solo recoberto de restos de cigarros, provocam uma reflexão sobre a finitude da trajetória humana a partir de dois vícios que tornam mais próxima a chegada da "indesejada das gentes”, com seu ríspido recado de que não vivemos senão para morrer.

A desafiante e inóspita trama tragicômica é aqui desenvolvida com nuances que misturam desde a escatológica descrição de moscas sobre os cadáveres até uma bem humorada passagem, em ritmo de rap, sobre a igualdade social dos restos humanos escoados pelos ralos.

A envolvente presença cênica do elenco é acentuada com sua maquiagem facial escura, aproximando aqueles seres das representações plásticas do medo e do espanto, das iluminuras medievais à fase negra de Goya, chegando a um sotaque de expressionismo alemão com a morte jogando cartas em citação fílmica de Bergman, no Sétimo Selo.

Um tema tão mórbido como este cria uma expectativa estranha na plateia, superada, a seguir, pela descoberta reveladora da fórmula mágica para o espetáculo. Já que a morte, aqui, é a letra Z na simbologia da terminalidade humana, o quarteto de intérpretes soube transcender, em alto astral, o susto provocado pelo lado escuro do enredo, não deixando nunca, mesmo neste cruel embate dramático, o riso perder das lágrimas.

ADUBO OU A SUTIL ARTE DE ESCOAR PELO RALO. Foto/Diego Bresani.

Um novo dramaturgo surge na cena carioca, desta vez é o jornalista gaúcho de Novo Hamburgo Joseph Meyer com O Comediante. Narrativa, entre o riso e o drama, sobre os embates de um ator que vive no ostracismo mas que se refugia num mundo ilusório, acreditando ainda ser dono absoluto dos aplausos de um ex-campeão entre luzes da ribalta.

A peça, interrompida pela morte súbita de seu diretor José Wilker, manteve seu nome nos créditos ao lado de Anderson Cunha que, de assistente, passou a ocupar o seu lugar, preocupando-se em manter as linhas mestras da sua proposta cênica original.

Ainda que revele um certo desequilíbrio narrativo com a transmutação do comando diretorial. A partir do roteiro dramatúrgico que trazia, em sua fórmula, nuances de tragicomédia entre o humor, mistério e suspense, com a proposital postura cênica no entremeio do melodrama cinematográfico e teatral da década de cinquenta.

A rica cenografia, acentuada pelos elegantes figurinos e envolvente iluminação, traz elementos decorativos do clássico ao retrô, não faltando candelabros, espelhos e até um piano de meia cauda, destacando-se, ao fundo, a transparência de um acolhedor jardim.

Sobrepondo-se a tudo uma elegante escada tendo nas paredes laterais retratos emoldurados de divas cinematográficas, de Garbo e Dietrich a Marilyn, por onde o protagonista (Ary Fontoura) faz uma emblemática entrada em cena, inspirada na de Gloria Swanson do Crepúsculo dos Deuses, de Billy Wilder.

Mas estas citações remetem também ao cinema brasileiro do pós-guerra, desde as salas familiares nobres dos melodramas típicos como A Sombra da Outra à ambientação feudal de chanchadas clássicas como Aí Vem o Barão e A Grande Vedete, todos da lavra de Watson Macedo.

Não faltam aí a hierática governanta (Angela Rebello) e o visionário motorista transformado em empresário (Gustavo Arthiddoro), ambos envolvidos na inescrupulosa ideia de encomendar uma biografia do esquecido ator a uma jovem jornalista (Carolina Loback). Com falseada mistificação de sua decadente carreira e mantendo o diabólico status de embuste sobre a lucidez e loucura do decadente proprietário da mansão.

Em mais convicta performance dos atributos de seu personagem protagonista, através de Ary Fontoura, demonstrando, mais uma vez, seu virtuosístico exercício da profissão de ator e até de intérprete musical, em momento melancólico, sob os acordes nostálgicos de Fascination.

Completando-se tudo com o pensar cinéfilo e o toque estético de José Wilker, a partir das próprias citações textuais do dramaturgo de passagens fílmicas clássicas entre Victor Fleming, Hitchcock e Billy Wilder, que imprime postumamente ao espetáculo um tributo do teatro à Sétima Arte.

                                             Wagner Corrêa de Araújo

O COMEDIANTE. Foto/Léo Aversa.
Estes três espetáculos estiveram em cena nos palcos cariocas entre os meses de maio e junho de 2014.

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