O CONDOMÍNIO : DA PRÁTICA MUSICAL ENTRE MUROS, SOB LATIDOS, QUEIXAS E CRIMES


FOTOS /ELISA MENDES

Se a música ( como a dança ) é intrinsecamente, desde sua ancestralidade, manifestação do coletivismo social  catártico, no pensar filosófico/estético de Theodor Adorno, como vivenciá-la diante da restrita realidade espacial dos condomínios  residenciais ?

Como ser músico, compositor ou intérprete, com seu necessário oficio da prática  diária se as paredes não impedem a incômoda interferência de sonoridades externas? Dos altos falares dos vizinhos a ruidosas sexualidades noturnas, sem falar dos insistentes latidos animais, sem previsão de hora para começar e para acabar.

Um tema recorrente da atual dramaturgia carioca, com exemplares investidas da Cia.OmondÉ –Inadequados – e do Clube da Cena com A Vida ao Lado, e, desta vez, em clima cômico/policialesco com sotaque kafkiano de humor negro e absurdidade, na trama - O Condomínio.

Uma peça autoral de Pedro Brício em que ele compartilha a direção com Alcemar Vieira, este último por sua vez, alternando a performance, no papel do músico Domenico, com Pedroca Monteiro. Tendo ao lado Sávio Moll como o empresário e produtor Raymond e, também, revezando em outras personificações incidentais.

Se em outras abordagens prevaleciam os conflitos da incomunicabilidade entre os moradores de um prédio, aqui há uma identificação maior com o cotidiano individualizado de um instrumentista, cantor e compositor.  Obrigado a conviver com os outros inquilinos numa politica de falseada boa vizinhança, embora em assumido isolamento, preferisse alhear-se da forçada  vida condominial.

A progressão narrativa, entre canções entoadas ao vivo para voz e violão na privacidade domiciliar de Domenico, são sempre perturbadas pelos irritantes uivos do cachorro de sua vizinha Carmen. E acaba, depois de muitos nervosos reclames, por desencadear uma investigação policial, com suspeita de duplo assassinato, contra o músico.  

Enquanto o quadro cenográfico (Tuca Benvenutti e Murilo Barbieri), abusando das nuances do avermelhado extensíveis à indumentária (Antonio Medeiros) em tons cafonas amplia, ao mesmo tempo, a exacerbação de sentimentalismo novelesco, climatizado ainda nos efeitos luminares (Ana Luzia de Simoni).

E sintonizado, ainda, no deboche coreográfico (Soraya Bastos) da dupla sob acordes de nostálgicos ritmos latinos, alterativo com ironizado cancioneiro ao vivo de brasilidade bossanovista mas quase brega, com trilha certeira (Jonas Sá/Gustavo Benjão) para sublinhar o clima burlesco do enrêdo.

Um Sávio Moll, mais sensorial, e um Pedroca Monteiro, mais atrevido, mas ambos em idêntico grau coesivo, reafirmam sua competência artesanal para assumir os desafios e os exageros de personagens rompantes, traçados com garra e ousadia.

Enquanto o comando diretor de Pedro Brício, avançando no dimensionamento de uma despretensiosa comédia autoral, entre o absurdo e o kitsch, e adentrando nos mecanismos risíveis das situações farsescas, alcança o necessário contraponto critico.

Da intolerância de um microcosmo condominial para a especular insensatez, com obscuras perspectivas, deste nosso pré-eleitoral macrocosmo político.

                                                Wagner Corrêa de Araújo


O Condomínio está em cartaz no Sesc Copacabana, de quinta a sábado, às 21h;domingo às 20h. 70 minutos. Até 30 de setembro.

PROCÓPIO – UM EXERCÍCIO SOBRE O FUTURO : OU A SALVAÇÃO PELA ARTE


FOTOS/RICARDO BORGES

A Arte Salvará o Mundo". Ao replicar o pensamento de Goethe, na voz de um dos  personagens de “Procópio – Um Exercício Sobre o Futuro, contextualiza-se o ideário dramatúrgico de Carla Faour a partir de uma crise politica não imune à onda de obscurantismo avassalador  sobre a criação artística brasileira.
Numa destas trágicas casualidades do destino a peça, no próprio conceitual de um espaço cênico arruinado do que sobrou de um teatro, estabelece uma simbólica conexão com as chamas devastadoras do histórico Museu Nacional, à causa da habitualidade na incúria oficial pelos acervos pátrios.
Em indução simbiótica, não deixando de ser metaforizado, sutilmente, o repulsivo estigma das falazes promessas de nossos candidatos a funções eletivas onde o projeto cultural é sequer mencionado. Por considerá-lo causa menor tanto para o bem coletivo, como para o fator auto  projecionista de governanças à base única da super valoração partidarista e  do  eterno tráfico de favores no “toma lá dá cá”.
E, mais ainda, ironizando o privilegiamento de resistente conservadorismo comportamental, no substrato radicalista da imposição de moralismo preso às ancestralidades de tempos e costumes já superados. Entregues, sempre, à luta espúria contra tudo e contra todos de pensar diferente, o que, em verdade, não anda assim tão longe do status social por nós vivenciado.
Sendo capazes até de fictício decreto proibitivo do exercício da arte e no expurgo de seus praticantes, como presencial fio condutor da narrativa e da progressão dramática deste Procópio de Carla Faour. Assumido com rigorosa inventividade artesanal e provocadora pulsão no comando diretor de Dani Barros.
Evocativo em sua estética teatral do no sense da censura, da coerção ideológica e dos desmandos pela violência, visualizados aqui em proposital decadentismo. Tanto no detonado plasticismo de sua cenografia (Fernando Mello da Costa) e indumentária (Bruno Perlatto), como nos efeitos de sombreamento melancolizado, ora da ambiência luminar (Renato Machado), ora dos episódicos efeitos sonoros (Rodrigo Marçal).
Completada por convicta representação na dúplice performance de Kadu Garcia e Paulo Gianni em intrépido jogo cênico, entre o lúdico e o reflexivo, pela afirmação da dignidade  humana no embate contra os “muros invisíveis”. Preenchendo, ambos, todos os contornos de dosagem ambígua de seus personagens no encaminhar-se ao fogo ardente de um epílogo/tributo  que comove e torna cúmplice cada espectador.
Mesmo que nos caracteres de individuação destas personificações haja um prevalente duelo de oponentes, ao dimensionar a psicofisicalidade destes dois miseráveis habitantes de um submundo na desconstrução de princípios e valores civilizatórios.
Diante de impasses aproximativos dos referenciais beckettianos da espera sem possibilidades e das inalcançáveis buscas, entre perguntas sem resposta sob o compasso da dúvida.
Na solidez, enfim, de uma teatralidade substanciada, exemplarmente, entre a fabulação, com sotaque de absurdo teatral ancorado no futurismo, e um visceral verismo sintonizando a atual problemática da nossa identidade nacional.  

                                              Wagner Corrêa de Araújo 



PROCÓPIO – Um Exercício Sobre o Futuro – está em cartaz no Sesc Copacabana, de quinta a sábado, às 20h30m; domingo, às 19h. 80 minutos. Até 23 de setembro.

NOSSAS MULHERES: UMA COMÉDIA DRAMÁTICA COM MUITO RISO E POUCO SISO

FOTOS/NANA MORAES

O dramaturgo, de origem tunisiana, Eric Assous, com diversas incursões também pela televisão e pelo cinema, é autor de um dos maiores sucessos dos palcos franceses - Nossas Mulheres. De 2015 e que, ainda, chegou às telas  repetindo a direção teatral de Richard Berry.

Apesar do êxito de público tanto a peça e, em maior grau, o filme, sofreram severas admoestações das entidades feministas. Por seu enunciado de irônica risibilidade, em compasso de vaudeville e de comédia cinematográfica, a partir de um suposto caso de feminicídio cometido por um de seus personagens masculinos - o marido da vítima.

Numa exagerada radicalização social contra as duas versões justificando-se na prevalência do politicamente correto. E no paralelo acirramento, tanto do machismo e da violência doméstica, como da consequente mobilização e defesa de classe contra as agressões ao segundo sexo.

Sabendo-se que a trama dramatúrgica assume um substrato lúdico, quase burlesco, no descompromisso ideológico e na inconsequência do mero encontro de três homens casados no apartamento do radiologista Max (Edwin Luisi), para jogar conversa fora, bebendo e jogando cartas, na onipresença delas.

Ele, o único oficialmente descasado, e o reumatologista Paulo (Isio Ghelman), aguardam pelo terceiro marido -  Simão (alternando, Márcio Vitto e Edmilsson Barros). Embora este, ao chegar, surpreenda com a súbita e inesperada confissão de que acabara de assassinar a esposa por estrangulamento.

Estabelecendo-se, a partir daí, o dilema sobre o que fazer em relação à culpabilidade do acusado - avisar a polícia, ignorar o ocorrido ou incentivá-lo à fuga. No entremeio das confissões intimistas de cada um deles e de um iminente conflito ético, de fidelidade ou fissura amical, com a revelação de fato que compromete a filha de um deles.

Onde a narrativa dramatúrgica se estende, além do necessário, na reiterativa orbicularidade de dialetação sobre uma suspeita. Conduzindo a trama mas incapaz de se expandir totalmente em cena com seu perceptível sustentar-se pelo previsível.

Resgatando-se, enfim, a cumplicidade palco/plateia, por obra e graça de um potencializado elenco e por uma convicta direção (André Paes Leme), sabendo como bem imprimir desenvoltura à representação com suas adequadas marcações.

E contando com a artesanal base dos seus elementos técnico/artísticos. Na essencialidade naturalista de ampliada arquitetura cênica (Miguel Pinto Guimarães), na funcionalidade da indumentária cotidiana (Bruno Perlato) e na especial sinalização luminar (Renato Machado) em inserts, no proscênio, de confessional personificação. Embora ancorados na trivialidade banal de máximas reflexivas sobre descompassos nas relações matrimoniais.

Com boa manipulação de recursos histriônicos e dramáticos, destaca-se o elenco corporificando estes  maridos de inquieto comportamental psicológico.  Na ausência de suas respectivas mulheres mas, em contraponto crítico, inspirados pela distância delas.

Pontuado pelo papel provocador de  Márcio Vitto que, nas episódicas intervenções, em estado etílico, revela seus anseios extraconjugais e imaginária auto acusação de culpabilidade criminosa.

Confrontando, de um lado,  Isio Ghelman acostumado, aqui, ao convencionalismo da ambiência doméstica e com rebeldia interna prestes a eclodir, em mais uma de suas apuradas teatralidades.

Enquanto o personagem de Edwin Luisi, diante de uma vida arredia na falta do afeto feminino, refugia-se na sua  coleção de vinis e em rompante gestual rap, sintonizando o ator na oportuna comemoração de quase meio século de vitoriosa carreira.

                                             Wagner Corrêa de Araújo


NOSSAS MULHERES está em cartaz no Teatro Ipanema, de sexta a segunda, às 20h. 80 minutos. Até 24 de setembro.

FOCUS CIA DE DANÇA – STILL REICH: GEOMETRISMO CORPORAL, TRANSE COREOGRÁFICO


FOTOS/PAULA KOSSATZ

No grande deserto que se tornou a temporada coreográfica nos palcos cariocas, tanto no clássico como no contemporâneo, com uma crise que desafia a produção de novos espetáculos, o anúncio de duas semanas com a Focus Cia de Dança traz a feliz equivalência de um oásis. Tanto pela resistência como pelo desafio em manter, ali, acesa a autenticidade inventiva da dança contemporânea.

Em seus quase vinte anos, esta Cia., através de seu coreógrafo/diretor Alex Neoral e de seu consistente elenco de oito bailarinos, vem priorizando um alentado desdobrar-se na busca de novas perspectivas para a criação coreográfica brasileira.

Novamente reunidos, sob o comando mor de A. Neoral   (no dúplice oficio de atuação ao lado deles), aqui estão Carolina de Sá, Cosme Gregory, José Villaça, Márcio Jahú, Marina Teixeira, Monise Marques e Roberta Busoni, para uma singular performance titulada, bem a propósito por seu caráter antológico/retrospectivo, de Still Reich.

Esta base sonora/musical em torno das avançadas tessituras composicionais do americano Steve Reich está alinhada à atração maior que sua obra vem exercendo há gerações sobre a excelência da dança contemporânea, indo de Jerome Robbins a Anne Teresa de Keersmaeker, passando pela trajetória de  Maurice Bejart, Alvin Ailey e Jiri Kylan.

Inicializado como bateirista de jazz /rock anos 60/70, Steve Reich é um emblemático compositor, não só como o precursor/inventor do minimalismo musical, como pela permanente evolução de sua linguagem artística. E que, aqui, tem bela exemplificação nestas três peças apresentadas pela Focus Cia de Dança.

A performance ininterrupta, com o precioso suporte do  desenho de luz (Binho Scheffer), assinalada por episódicas pausas sonoro/luminares, é aberta pela retomada da obra estreada pela Cia em Stuttgart (2008), inspirando-se nominalmente na partitura Pathways de  S. Reich.

Onde, na habitualidade do estruturalismo fragmentário da composição original, os oito bailarinos conduzem a representação, ora na sequencialidade energizada de entradas e saídas, ora nas sensoriais formações em duos com reflexo especular em quartetos .

Interpelando falas numéricas, no entremeio de uma rígida gestualidade de padrões geometrizados, potencializando as relações da fisicalidade dos bailarinos com o preenchimento do espaço cênico.  

Seguindo–se o desenho coreográfico de Trilhas,  com o substrato reichiano de Different Trains-After the War, dimensionando as projeções da corporeidade em instantâneos avanços de um  tempo gestual direcionado  à pulsão imediata do próximo instante. Numa prevalência do puro movimento abstrato, longe de qualquer referencial à linearidade de um discurso narrativo.

Mas é o recorte do terceiro movimento – Keta – inspirado na composição de Reich mais transposta para o palco coreográfico – Drumming , classificada autoralmente pelo estilo phase work, que possibilita maior impacto e cumplicidade palco/plateia.

Não só por sua reiterativa espiralidade em torno de  uma  mesmo fraseado sonoro, com suporte percussivo em primitivos cultos tribais africanos ou, mais ainda, por seu embate ritualístico, de sacralidade erótico/profana.

E que Alex Neoral visualiza em viscerais fraseados coreográficos que os intérpretes masculinos e femininos equalizam, na plasticidade sensualizada de peitorais nus, e na contínua e feroz velocidade de corpos em movimento.

No alcance duma celebração exorcística dos encontros corpóreos, remissiva às ancestralidades e que os vai atirando, exaustivamente, ao solo em metafórico ato sacrifical, numa quase releitura, com olhar armado na contemporaneidade, do emblemático inventário estético da sagração stravinskyana.

                                       Wagner Corrêa de Araújo


STILL REICH/FOCUS CIA DE DANÇA está em cartaz no Teatro Cacilda Becker/Catete, de quinta a sábado, às 20h; domingo, às 18h. 60 minutos. Até 23 de setembro.

MEU SABA : ENTRE A DOR E A ESPERANÇA

FOTOS/OLÍVIA D'AGNOLUZZO


Numa realidade mundial assolada pela cultura da violência, pelo eclipse moral e espiritual, pela banalidade do mal de que falava Hannah Arendt, a reflexão propiciada por Meu Saba, texto teatral inspirado no relato afetivo e memorial do livro de Noa Ben Artzi( Em Nome da Dor e da Esperança) torna obrigatório conferi-lo no palco.

A autora era neta de Ytzhak Rabin, primeiro ministro de Israel, que, por ironia, foi friamente assassinado, em 1995, por um compatriota ortodoxo, de um não conformismo radical quanto aos esforços de paz do líder judeu diante do sonho de Yasser Arafat pela Nação Palestina.

A versão teatral, através de Evelyn Disitzer, além da atriz Clarissa Kahane e do próprio diretor Daniel Herz, alcança na sua visualização cênica um dos mais sensíveis exemplares estéticos da atual temporada carioca.

A ideia de Daniel Herz em criar dois tempos simultâneos –o tempo memorial e o tempo presente , com seu referencial a Robbe - Grillet / Resnais , torna especialmente singular a proposta dramatúrgica. Ora nas lembranças da infância e do avô, num cara a cara da protagonista com a plateia, ora nos 30 segundos próximos do seu testemunho fúnebre, no atravessar o caminho translúcido em direção ao púlpito.


Numa destas mais originais arquiteturas plásticas (Bia Junqueira) à base de poucos mas eficazes elementos plásticos, ressaltada em luzes superlativas (Aurélio de Simoni) e uma partitura sonora( Antônio Saraiva) de propícias induções ambientais, fica estabelecida a envolvência deste jogo estético dimensionado em dois momentos paralelos .

Numa passarela de tijolos, fissurada ao meio e direcionada a um palanque onde um fuzil se faz de microfone, a atriz na absoluta entrega a sua emotiva performance, consegue aliar à sua natural insegurança, diante do desafio das marcações rígidas da direção, uma jovialidade que a identifica sobremaneira com o personagem assumido.

E aí tornam-se imprescindíveis a solene tonalidade gestual ( Duda Maia) e a rigorosa elegância do figurino (Antônio Guedes) para a ritualística inflexão verbalizada deste apelo de paz em período de ceticismo.

Hoje, setenta e três anos após a tragédia do Shoah, a solução final do genocídio, estamos novamente diante da barbárie perpetrada em nome dos fundamentalismos religiosos e das ortodoxias políticas.

E, assim, ao compartilhar desta fundamental experiência cênica, com seu impulsivo tônus filosófico/social, quem sabe possamos tentar preencher, mesmo que ainda por breves instantes interativos, o vazio da incessante busca por uma ética da sobrevivência numa temível época onde, segundo Theodor Adorno, um dos mais lúcidos estetas e pensadores do século XX, - 

A cegueira alcança tudo, porque nada compreende ".

                                Wagner Corrêa de Araújo



MEU SABA reestreia na Casa de Cultura Laura Alvim/Ipanema, sexta e sábado, às 20h; domingo, às 19h. 60 minutos. Até 7 de outubro.

MEUS DUZENTOS FILHOS: RESGATE ARTAUDIANO DE UM ATO HERÓICO

FOTOS/BRUNNO DANTAS

“Reformar o mundo quer dizer reformar a educação”. Este já era o lema do professor, médico e escritor polonês Janusz Korczack(1878-1942), antecipando os futuros avanços da chamada nova pedagogia, e que teve, entre seus ilustres seguidores, o suiço Jean Piaget e  o nosso Paulo Freire. 

Durante quase três décadas administrou e viabilizou a prática de seu ideário a favor da infância desamparada no exemplar orfanato fundado em 1912 e que lhe foi arrestado pelos nazistas logo após a invasão da Polônia, obrigando-o a transferir suas duas centenas de crianças judias para as insalubres instalações do Gueto de Varsóvia.

Mesmo assim, ele se esforçou, no entremeio de uma luta insana, a defender seus pequenos mantendo acesa a chama da democracia micro cósmica, estabelecida e partilhada entre eles. Modelar em sua singularidade mas especular a uma organização politico/social adulta, com direito a um sistema parlamentar e  jurídico, com seu próprio código comportamental altruísta e suas punições, estas sempre com intuitos catárticos.

Sua trajetória já inspirou dois renomados cineastas – o alemão Aleksander Korda e o polonês Andrzej Wajda – a partir do legado de suas obras, ora pelo confronto ao prevalente antissemitismo da época, ora pela exposição de suas teorias educacionais a favor da dignidade humana. E, agora, através de particularizada textualidade dramatúrgica de Miriam Halfim, em provocativo e reflexivo comando diretorial de Ary Coslov e surpreendente performance de Marcelo Aquino.

Com uma narrativa não necessariamente linear, o personagem vai rememorando momentos existenciais numa sequencial alusão ao seu passado, à sua breve experiência como oficial do exército pátrio, ao seu projeto pedagógico e ao seu códice geral de vida.

Expositivo em seus escritos, especialmente nos seus Diários, emotivamente contextualizados em teatralidade de enunciativas vocalizações e energizadas gestualizações (Ana Vitória), sob poética e pânica mascaração da dor e da violência.

Com um adequado recato cenográfico (Ary Coslov) à base  das mutabilidades plásticas de uma cadeira e uma mesa, num palco emoldurado frontalmente com um telão que visualiza fotografias familiares e dos órfãos. Além de filmes documentários sobre as  perversidades da solução final no projeto nazista. Conectando-se sempre à absoluta convergência focal ator>público para fluência maior da pulsão drama>catarse.

Sob  estetizados tableaux sonoros (A.Coslov) habilmente privilegiando melancolizados acordes e  cantares tradicionais judaicos, entre sensoriais marcações luminares (Paulo Cesar Medeiros), o ator protagonista Marcelo Aquino assume convicta veemência na exposição vocal/física de uma tragédia terminal anunciada.

Acentuadamente previsível na referência à representação patética de uma peça de Rabindranath Tagore, em torno da iminente inescapabilidade da morte de uma criança, e na paisagem mágica das nuvens, insinuada através das frestas do soturno vagão de carga animal que conduz o professor e seus "duzentos filhos" para o implacável destino crematório de Treblinka.

Numa tessitura ritualística artaudiana, fazendo entender  sua transposição cênica pela orgânica simbolização de visceral intimismo psicológico, sintonizado em transe externo, com tal substrato verista em torno da crueldade humana que impacta o mais acomodado  e desentorpece o mais alheio espectador.

                                              Wagner Corrêa de Araújo


MEUS DUZENTOS FILHOS está em cartaz no Centro Cultural da Justiça Federal, Cinelândia/RJ, de sexta a domingo, às 19h. 60 minutos. Até 23 de setembro.

NERIUM PARK: ALEGORIA E REFLEXÃO EM THRILLER PSICOLÓGICO

FOTOS/RENATO MANGOLIN

Como um representativo nome da nova dramaturgia catalã e dono de já considerável obra, com peças autorais montadas mundo afora, Josep Maria Miró vem alcançando também os palcos brasileiros.

Seja por uma das prestigiadas realizações da temporada teatral carioca 2017, com O Princípio de Arquimedes, na tradução/direção de Daniel Dias da Silva, mas ainda por ter inspirado Carolina Jabor em bem sucedida versão cinematográfica – Aos Teus Olhos.

E, agora, no retorno, pelo forte presencial deste thriller psicológico Nerium Park, em outra acurada tradução de Daniel Dias da Silva e outro artesanal comando de Rodrigo Portella.

Onde um jovem casal classe média decide o recomeço  de vida em inédita aquisição residencial, midiatizado pelo ideário de um absoluto oásis de paz, na atratividade de empreendimento imobiliário distanciado dos ruidosos agitos da urbanidade.

Mas que, após breve transcurso temporal, enunciado dramaturgicamente na simultaneidade de onze meses e onze cenas, é transmutado numa temporada no inferno em progressiva desintegração das relações afetivas e na ambiguidade terminal dos projetos  familiares.

Com referencial titulação, ironizada na nominação de planta tóxica (Nerium Oleander), a peça desestrutura as falsas aparências do bem estar social apregoado pelos projetos corporativos. Onde a proximidade da natureza fora do perímetro metropolitano acenaria com a fórmula mágica da comodidade e da segurança habitacional.

O que, numa bem urdida progressividade dramática sob pulsão do realismo psicológico, aos poucos, vai se deixando também “intoxicar” com esta inalcançável perspectiva. No isolamento cotidiano e no vazio cenográfico (Julia Decache/R. Portella) de plantas artificiais e alegórica piscina (de conexão significante também com a peça O Princípio de Arquimedes) amplificando angustiada espacialidade.

Na mutabilidade da indumentária (Ticiana Passos), por expressivas marcas luminares (Paulo Cesar Medeiros) e inusitada intervenção sonora (Marcelo H) de contorno operístico, com a ariosa valsa de Musetta de La Bohéme (Puccini), referenciando  a coqueteria nas relações amorosas.

E na súbita transformação de idílica felicidade em visceral conflito, sob compasso do árido enfrentamento dia-a-dia de perguntas sem resposta. Enterrando, literalmente, o sonho no entremeio de psíquicos questionamentos e pela provocação de um invisível, mas quase ameaçador, terceiro personagem.

Se na peça anterior (O Princípio de Arquimedes), era imediatista a identificação decisória do espectador na busca da culpabilidade pedófila de um professor de natação, nesta última há maior distanciamento palco/plateia diante do psicologismo nervoso, particularizado e extremamente intimista na egotrip de seus dois personagens.

O que torna mais exigente a trajetória de comando cênico (Rodrigo Portella) na construção do processo de desmoronamento psicofísico dos dois protagonistas. Mas que ele, mesmo sintonizado num clima  psicológico entre o onírico e o pesadelo, equilibra no naturalismo cru de recursos de fisicalidade sensorial.  

De um lado, através da passividade do personagem masculino em conflituoso comportamental, instabilizado pelo desemprego recente e nos escapes metafóricos com o improvável morador. Substrato de um papel que coloca o ator (Rafael Baronesi) à beira de iminentes riscos da representação monocórdia, no insistente ir e vir de seu paranóico dilema mental.

Paralelo ao contraponto do papel feminino nas alterativas nuances de suas posturas, ora de praticidade ora de antagônica adesividade aos devaneios delirantes de seu consorte. O que a atriz (Pri Helena) alcança, em contundente entrega e com energizada versatilidade, nos  oponentes  embates  destes flutuantes estados emocionais.

Ambos, enfim, convergindo para um instante feroz de desnudamento da incomunicabilidade humana, viabilizado em reflexivo pensar teatral de olhar armado nos males da contemporaneidade civilizatória.

                                             Wagner Corrêa de Araújo


NERIUM PARK está em cartaz no Teatro Gláucio Gil/Copacabana, de sexta a segunda, às 20h. 100 minutos. Até 10 de setembro.

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